domingo, 4 de setembro de 2016

Histórias do Paraná - A boa gente cigana

Histórias do Paraná - A boa gente cigana

A boa gente cigana
Lauro Grein Filho

Aclamado como "terra de todas as gentes", o Paraná abriga em seio de etnias com as quais harmoniosamente nos entendemos, nos habituamos e nos acostumamos.
Nos meus tempos de clínica, em Castro, além do relacionamento breve das consultas e dos ambulatórios, tinha, ao curso dos internamentos hospitalares, a oportunidade de um convívio maior e mais amplo com os representantes de diferentes raças que por lá me procuravam.
Eram os japoneses de Assaí, os holandeses de Carambeí, os alemães de Terra Nova, os poloneses do Rio Abaixo, os sírios do Norte Velho, gente diversa em seus conceitos, medos e maneiras a merecerem atenção, diálogos e tratamentos também diversos.
Dentre esses, os mais fáceis eram os japoneses, os mais desconfiados os sírios, os mais cordatos os poloneses.
Certa vez, o Zecki Fadei chegou afobado ao meu consultório: -"Queria que o Sr. me visse a pressão."
- "Normal, 13 e 8."
- "E uma barbaridade! Não dá mesmo para acreditar em ninguém.
Estive há pouco no Dr. Lineu e ele me disse, 13 e 7; fui ao Dr. Libanio,
14 e 8; passei no Dr. Bude, 14 e 7. Como é que pode?!"
Declarei-lhe então que toda aquela celeuma era o merecido castigo à sua desconfiança.
Alertei sobre a inconveniência de estar consultando toda a classe médica da cidade, quando deveria confiar plenamente em um só, acrescentando que mais indicada para "tirar pressão" era a respeitável senhora sua mãe, idosa e doentia, e não ele, jovem e saudável.
Não imaginava, entretanto, naquela altura, que espécie humana cruzaria em breve meus caminhos... Notei logo ao chegarem, ocupando e povoando o Largo Indalécio de Macedo, em frente ao hospital, com suas barracas, seus tachos e suas tralhas. E da janela do meu consultório passei a observar a movimentação daquela gente estranha, errante e mística, povoada de lendas, mistérios e fantasias. À tarde me chamaram.
No fundo de uma tenda, entre colchões, cobertores e almofadas, sofria uma ciganinha encardida e miúda. Não teria mais que oito anos e revelava nos sintomas e nos exames, os indícios da doença insidio-sa: - meningite.
Removida para o "Bom Jesus", a pequena mereceu desde logo os maiores cuidados, esforços e desvelos.
Caso grave e fastidioso nas precárias condições de isolamento, no exaltado inconfor-mismo dos parentes, na falta dos melhores recursos terapêuticos.
O Hospital tumultuado e invadido pela ciganada suportou seus piores momentos.
Os assédios eram constantes, as dúvidas e perguntas, persistentes e intoleráveis.
Feliz e finalmente, num claro sábado de maio, a menininha teve alta.
Os ciganos então transbordaram de alegria, júbilo e reconhecimento, intitulando-se meus amigos e até meus irmãos.
Concordaram, amistosos com as contas do médico e do hospital, que pagariam no dia seguinte, domingo, quando me ofereceriam um churrasco, dedicado também às Irmãs do Hospital.
Seria ao meio dia, de carneiro gordo, já cevado para o abate.
O convite era extensivo à mulher e filhas, com acenos de presentes em prata trabalhada, cinzeiros, pulseiras, adomos, etc... e para o senhor, além do pagamento, uma grande surpresa.
O pessoal era de fato excelente, o melhor que já conhecera, e aquelas provas da mais pura amizade e gratidão muito me sensibilizaram e enterneceram.
Bem por isso, domingo pela manhã, antecipando-me na hora, resolvi dar uma chegada ao acampamento dos meus novos queridos irmãos.
Daí tive a prometida surpresa. O Largo Indalécio Macedo lá estava, deserto, calmo, sereno e ermo como sempre.
Nem carneiro, nem presentes, nem pagamento. E de ciganos, nem o rastro.

Lauro Grein Filho, médico e presidente do Centro de Letras do Paraná


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