quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Histórias do Paraná - O advogado e a monstra

Histórias do Paraná - O advogado e a monstra

O advogado e a monstra
Roldão Arruda

Os Fatos desta história são reais e aconteceram há muitos anos, numa cidadezinha do norte do Paraná, próxima de Londrina.
Tudo começou no dia em que uma moradora decidiu enviuvar por conta própria.
Esfaqueou o marido enquanto dormia.
Morte natural na cidade era motivo de comoção.
Morte matada era revolução.
Mas, vou pular a parte da devastação que o crime causou na rotina local, dividindo até famílias, para ir ao que interessa: entre os dois advogados da cidade, o pai da moça teve que escolher o mais inexperiente, de banca recém-mon-tada. O outro era cunhado do defunto.
O doutor Ferrara, o jovem advogado, empalideceu ao ver pela primeira vez a cliente.
Com aquela abundância de olhos e lábios e o corpo traçado feito geografia de serra, ora avançando e recuando,
subindo e enchendo os olhos, seria difícil ganhar a causa.
Mesmo iniciante, o doutor sabia que mulher bonita é problema em tribunal de júri.
Ninguém se convencia de que aquela Sofia Loren brejeira tinha boas intenções na cabeça.
Ou em alguma outra parte do corpo.
Mesmo que fosse santa.
Não se vai julgar ninguém aqui, mas consta que a moça matou por ciúmes.
Casada de pouco, amamentando o filho, não teria suportado as traições do rude açougueiro, seu marido.
O fórum, no primeiro andar de um sobradinho, sobre uma agência bancária, foi pintado de novo.
No dia marcado para o julgamento, o doutor Ferrara saiu de casa antes do dia clarear.
Tinha muito que fazer.
Foi ele quem escolheu o vestido de bolinhas pretas que a cliente usou no dia.
Se não escondia a exuberância, o que era impossível, também não exaltava a luxúria.
A cabeleireira foi chamada para fazer um coque simples, capaz de conferir um ar de Madonna à Sofia Loren. O advogado também conversou com a mãe da ré, que pajearia o bebê no dia.
Começou a sessão. A faca de cozinha. O lençol ensangüentado.
Os buracos na camisa do açougueiro.
Cada objeto, cada gota de sangue, cada prova do fel, tudo era repetido pelas pessoas que haviam conseguido entrar no fórum para as que estavam na escadaria e, dali, para a multidão ao redor do sobrado.
As quatro da tarde desceu a notícia da suspensão da sessão, por dez minutos. A pedido da defesa.
Em seguida, um rapagão, ajudante do advogado, saiu desabalado do fórum.
Voltou com a velha mãe e o bebê.
"O filho da monstra", alguém apontou.
As pessoas acotovelaram-se para ver. E o que viram? Um bebê que chorava.
Chorava doído, feito bezerrinho desmamado.
Mas esta cena, da avó com o bebê, acossados pela sanha pública, teve um efeito mágico. A multidão calou, envergonhada, abriu caminho, e aquele choro foi cruzando as escadas, as almas.
Quando finalmente chegou ao destino, o colo de bolinhas, um sussurro correu a escadaria: "A assassina pegou a criança."
Então, diante do mundo, a ré afagou os cachinhos da sua criatura, suados do esforço, e acalmou-a com uma fala baixinha, boa.
Depois soltou o coque, desabotoou o vestido e derramou o peito para fora.
Quando a boquinha sugou, teve gente que chorou.
Naquele momento, o advogado, que dera ordens à avó para não alimentar a criança, transformou a cliente de monstra em mãe.
Quem não havia tido mãe que atirasse a primeira pedra.

Roldão Arruda, norte-paranaense, jornalista em São Paulo


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