segunda-feira, 30 de junho de 2014

Histórias do Paraná - Meu menino

Histórias do Paraná - Meu menino

Meu menino
Pedro Ramblas Filho

O ônibus, como sempre naquele horário, comecinho da noite, estava abarrotado de gente.
Operários, comerciárias, um que outro sujeito de terno desalinhado e pasta 007, estudantes... todos mudos, o cansaço estampado nos rostos.
De repente, uma ordem gritada lá na frente, por alguém ao lado do motorista acordou os sonolentos e sobressaltou os acordados.
- Encosta que é um assalto! E fica todo mundo quieto, quero ver todo mundo manso!
O cano do revólver, a dois palmos da cabeça do motorista, tremia um pouco.
No meio do ônibus, uma senhora ensaiou gritar.
Foi calada por novas ordens nervosas:
- Quieta aí!
- Todo mundo calado!
O do revólver tinha dois comparsas, um na porta da frente e outro perto da porta do meio. O motorista encostou devagar no meio da quadra, na frente de dois terrenos baldios, perguntou ao do revólver se ali estava bom. O assaltante respondeu que sim e, sem desviar o revólver da cabeça do motorista, explicou como ia ser: com calma, um por vez em cada porta, os passageiros iam deixar o ônibus; na saída iam deixar bolsas, carteiras, anéis e relógios com "os companheiro"; que não se preocupassem, os documentos todos iam ficar no ônibus; que ninguém chamasse a polícia logo, senão o motorista "dançava"; que ninguém reagisse dentro do ônibus, senão também "dançava". O cobrador, nessas alturas já tinha sido limpado.
Devagar, como ordenado, os passageiros começaram a descer, deixando antes com os assaltantes tudo que fora pedido, mais as bijuterias, por via das dúvidas.
Uma senhora gorda que chorava baixinho, desesperada que a aliança não saía do dedo, foi empurrada por um dos assaltantes:
- Vamos logo, dona, pode ficar com a aliança.
Por pouco, a gorda não se esborracha no chão.
Já tinha saído quase metade dos passageiros quando o do revólver encarou uma senhora de seus trinta e poucos anos, na fila para deixar a bolsa na porta da frente. Não foi bem uma encarada, mais um olhar de curiosidade. O assaltante insistiu alguns segundos sem tirar os olhos, a senhora era só medo.
O assaltante continuou, mas seu rosto foi se descontraindo, ensaiou um sorriso, os olhos brilharam, e então exclamou:
- Tia Carmenü
A jovem senhora, apavorada, não conseguiu pronunciar palavra. O assaltante repetiu a exclamação:
- Tia Carmenü Não lembra de mim? O Luiz, Luizinho, seu aluno lá da Graciliano, lembra?
A senhora olhou com curiosidade o assaltante, aos poucos seu rosto se descontraindo, tomando cor, os olhos ganhando brilho.
- Luizinho?! E você mesmo, Luizinho! Mas como você cresceu, meu menino!!
Nessas alturas, parara toda movimentação dentro do ônibus,
passageiros e demais assaltantes, ainda sem entender bem a situação, pareciam avaliar o crescimento do "Luizinho". Ele tinha coisa de 1,80 metro de altura, ombros largos, cabelos pretos, aparentava entre vinte e vinte e cinco anos.
Pela primeira vez baixou o revólver, passou-o para a mão esquerda, a direita estendeu num respeitoso cumprimento. A professora perguntou de sua vida, fingiu espanto, ao sabê-lo casado e já com dois filhos.
Voltou-se então para os demais passageiros, agora já sorrindo, e fez a apresentação, com orgulho:
- O Luizinho.
Meu menino mais inteligente e bonito, minha primeira turma de alfabetização, primeiro ano de professora, na Escola Graciliano Ramos, lá na Fazendinha... já passou tanto tempo, né meu menino?...

Pedro Ramblas Filho, acadêmico de Direito

Histórias do Paraná - Os galafares

Histórias do Paraná - Os galafares

Os galafares
Rodrigo Pereira Gomes

Não existia nenhuma instituição bancária no Paraná de meados do século XVIII, quando ainda não passávamos de um território de mínima importância para a sede da Província, São Paulo. E se não havia bancos, nem carros fortes, quem levasse daqui qualquer mercadoria para vender em São Paulo ou onde fosse, na volta invariavelmente só teria um lugar para guardar o dinheiro — o próprio bolso.
Elementar, meu caro Watson.
Com cabeça suficiente para deduções elementares como essa, mais uma boa dose de coragem, algumas armas e montarias, grupos de bandoleiros fizeram a festa, na primeira metade daquele século, assaltando tropeiros que retornavam de Sorocaba pelo lendário Caminho do Viamão, trazendo as guaiacas abarrotadas de reluzentes moedas de ouro.
Esses assaltantes de estrada eram chamados de "Galafares". Segundo o historiador David Carneiro nos revela em uma de suas inúmeras obras, costumavam aguardar suas vítimas escondidas num capão perto de sede do Sítio do Rodeio de Antônio Tigre, que vem a ser atualmente a simpática Campo Largo.
Identificar os endinheirados era fácil.
Havia, em primeiro lugar, os tropeiros de volta de Sorocaba. E nem era preciso marcar as feições dos tropeiros na ida ou calcular o valor dos animais levados à venda. O governo se encarrega de facilitar as coisas.
Acontece, que, antes de passar pelo Rodeio de Antônio Tigre, os tropeiros tinham de fazer uma parada no Caiacanga para uma espécie de assalto oficial, o pagamento dos impostos.
Pelo tanto pago em impostos, os galafares facilmente deduziam a soma total que os tropeiros portavam.
Novamente elementar, meu caro Watson. O historiador David Carneiro só não nos revela como os galafares obtinham a importante informação de quanto os tropeiros deixavam em impostos no Caiacanga.
Mas a gente até desconfia...
Os galafares deram trabalho durante anos a tropeiros, arrecadadores de ouro e autoridades. Só foram exterminados - isso mesmo, exterminados - em 1971, pelos senhores Brás Velozo e Domingos Padilha, ambos sobrinhos e sucessores de Antônio Tigre, o tal que dava nome ao Rodeio que deu lugar, anos depois, à cidade de Campo Largo.
Batizado como Antônio Luiz Lamin, natural de Parnaíba, Antônio Tigre era, segundo o historiador, ‘senhor’ de todas as terras existentes desde o meio do segundo planalto até bem perto de Curitiba.
Na sede da comarca, chegou a juiz ordinário, vereador, procurador do "Conselho dos Homens Bons" e capitão de ordenanças, até sua morte em 1738. Parece que não se importava muito com a ação dos galafares em suas terras.
Já os sobrinhos de Antônio Tigre moveram uma verdadeira guerra contra os salteadores.
Talvez porque um deles, o Brás Velozo, além de herdar o Rodeio e ser nomeado tenente coronel do regimento de ordenadas da milícia de Curitiba, também foi nomeado provedor do Registro do gado que, pelo Viamão, vinha dos campos do sul e se dirigia a Sorocaba.
Daí que já estavam pisando no calo dele...
Quase dois séculos e meio depois, modernos galafares atacam com incrível freqüência os ônibus de turistas que se dirigem a Foz do Iguaçu pela BR-277 (curioso, para tomar a rodovia, saindo de Curitiba, passa-se pelo Rodeio do Antônio Tigre, digo Campo Largo). Como os galafares de antanho, os assaltantes de hoje sabem que os turistas levam dinheiro, e bastante - afinal, são atraídos menos pelas cataratas e mais pelas compras no Paraguai.
Mas polícia nenhuma parece capaz de acabar com os modernos galafares, que não só roubam como, às vezes, também matam. E a comparação resulta inevitável: o que falta, hoje, é um Brás Velozo.

Rodrigo Pereira Gomes, funcionário público aposentado

domingo, 29 de junho de 2014

Histórias do Paraná - Cascavel

Histórias do Paraná - Cascavel

Cascavel
Rubens Nascimento

Cascavel, sabem todos, vem a ser uma cobra repelente, e das mais venenosas. Não é, convenhamos, dos mais belos nomes para se batizar uma cidade.
Daí que muita gente ainda estranha a indaga porque Cascavel, a cidade, acabou recebendo esse nome.
Presume-se que, à época de início do povoamento, tinha tanta cobra na região quanto pé de soja atualmente. O fato é que em novembro de 1951, quando foi elevado a município, vinte anos depois do pioneiro Joaquim Silvério de Oliveira fixar residência na região, Cascavel já tinha essa denominação. E não são poucos os que dizem que, pelo clima de discórdia e violência que imperava na cidade na década de 50, até que o nome era bastante apropriado.
Com o crescimento da cidade, porém, muitos moradores começaram a se incomodar com o nome, era natural que do incômodo se passasse a um movimento nascente que pregava a mudança na denominação da cidade.
Nos idos de 1960, sendo eu presidente do Lions Clube de Cascavel, convoquei uma concorrida assembléia para a discussão do assunto.
Se o nome da cidade incomodava a alguns, ou muitos, que se debatesse os prós e contras de uma eventual mudança, e que se votasse em seguida a oportunidade ou não do Lions tomar as rédeas na condução de uma campanha pública pela mudança para um nome mais compatível com os novos tempos, com o progresso e união e a cidade então experimentava.
A chamada fina flor da sociedade local estava representada ali. O que fosse decidido certamente serviria para balizar uma campanha envolvendo o restante da população.
Ou, se fosse o caso, se encerraria ali, e para sempre, a arrastada discussão sobre o nome da cidade.
Mal terminei de falar, deixando a palavra para o debate, começou um ouriçamento total, como nunca veria em minha vida.
Quem não se levantou, levantou pelo menos um braço, todos falando ao mesmo tempo ou indicando quem queria falar.
Para acalmar a assembléia, tive que usar com vigor o símbolo da autoridade leonística, que é o sino.
Depois, como é de praxe no Lions Clube, dei a palavra ao Leão mais idoso, na época o Dimas Pires Bastos, titular do Cartório do Registro de Imóveis.
Homem um tanto sisudo, que raramente usava da palavra, Pires falou curto e grosso:
- Realmente, começou ele,
Cascavel é o nome de uma cobra repelente.
Mas, por outro lado impõe respeito. E graças à coragem e a pujança de seu povo a cidade está sendo conhecida não só no Paraná, mas no Brasil inteiro.
Quanto a atribuírem à Cascavel muitas histórias de violência, casos que na maioria acontecem fora dos nossos limites, deixem que falem.
Pois certo está o ditado — falem mal, mas falem de mim.
E mais ele não precisou falar.
As palmas que se seguiram indicavam que ele interpretara exatamente os pensamentos de todos. E como ninguém ousou falar mais a respeito, ficou praticamente assentada uma pá de cal sobre o assunto.
Cascavel continuou sendo Cascavel, com muito orgulho, E que assim permaneça para todo sempre.

Rubens Nascimento, empresário

Histórias do Paraná - "Seu" Andrézinho

Histórias do Paraná - "Seu" Andrézinho

"Seu" Andrézinho
Thiago Brandão Neto

A pedido de um amigo que estava com um pé no altar, o genial D. Francisco Manuel de Mello, escritor português do século XVII, escreveu a saborosa "Carta de Guia de Casados", contendo ensinamentos ainda hoje bastante úteis para casados, noivos, viúvos e quetais.
Um exemplo: Dom Francisco chama de "casamento da morte" a união de uma moça com um velho. E explica: "os velhos casados com moças apressam a morte, ora pelas desconfianças, ora pelas demasias".
Pois não era outra coisa o que se dizia do "seu" Andrézinho as vésperas do casamento com Maria, lá em Várzea, lugarejo perdido no interior do Município de Bocaiúva do Sul, a meio caminho de Campinhos e da antiga Colônia Marques de Abrantes.
Moça bonita, de cabelo preto e pele rosada, Maria sequer completara 18 anos. Já o "seu" Andrézinho... remanescente dos primeiros poloneses assentados na Colônia, viúvo, estava a caminho dos 83 anos.
Homem miúdo de corpo, até que estava razoavelmente conservado para a idade, mas 83 anos são 83 anos.
Já ia para uns 30 anos que enviuvara, mas o homem só embestou de casar de novo fazia alguns meses, logo depois da morte do filho único, solteirão. "Preciso alguém para me cuidar na velhice", dizia.
Daí... Por que com uma moça tão jovem, em vez de alguma das viúvas das redondezas, era a pergunta que ninguém ousou perguntar e ele jamais precisou responder.
Mas não tinha casa na comunidade em que não se cochichasse a mesma coisa: "esse não tá casando, tá, sim, é comprando uma petiça nova".
Sucede que "seu" Andrézinho tinha uma chácara de oito alqueires bem montadinha, carroção, parelha de mula, três cavalos, algumas vacas, criação de porco e galinha, plantava dois quartos de milho, um de feijão... Naquelas bandas, até que era um bom patrimônio. Já a moça Maria, de riqueza só tinha a família: pai, mãe e uma penca de irmãos.
Quando "seu" Andrézinho fez o pedido, a mãe da Maria chorou pelos cantos uns três dias; já o pai, esse - como se diz hoje em dia: deu o maior apoio.
Parece que até a Maria se encantou com a idéia do casamento.
De cara, ganhou enxoval e sapato de sola de couro - coisa que ela nunca calçaria na vida. E de mais a mais, o velho não haveria de durar por muito tempo...
Só o padre Antonio, que visitava o patrimônio duas ou três vezes por ano, se recusava a realizar o casamento. — "Isso é absurdo, é pecado!!" - vociferou quando foi procurado pelo Andrézinho.
Acabou convencido pelo próprio noivo: - "Se o senhor não casar, a gente se ajunta do mesmo jeito, o que é pecado maior".
A igrejinha de madeira do Ouro Fino nunca vira tanta gente como no dia do casamento.
Parecia que estava todo mundo ali para tirar a teima, ou para o churrasco de boi gordo que viria depois. "Seu" Andrézinho fez questão de esperar a noiva no altar - coisa que não se usava por aquelas bandas - e instruiu Maria para entrar na igreja andando devagarinho, mesmo que música não tivesse.
Quando Maria assomou na porta da Igreja, o rosto do velho polonês ficou mais vermelho que de costume.
Então ele se encurvou um pouco para a frente, levou as mãos no peito, encurvou mais ainda e se esborrachou no chão.
"Seu" Andrézinho estava morto! Ataque cardíaco fulminante! Nem desconfiança nem demasia, o pobre homem morreu de ansiedade; sequer pôde desfrutar da noiva.
Pior, é que casamento não houve. E sem casamento, a Maria é que não pôde desfrutar do patrimônio do Andrézinho.
Sem herdeiros aqui, e sem que ninguém conseguisse localizar um parente dele no Polônia, a chácara do Andrézinho acabou passando, tempo depois, para as mãos do governo.
Thiago Brandão Neto é contador epequeno empresário em Ponta Grossa.

sábado, 28 de junho de 2014

Histórias do Paraná - Um homem digno

Histórias do Paraná - Um homem digno

Um homem digno
Valêncio Xavier

O pontagrossense Manuel Herrington Wambier.
Wambier, como todo mundo chamava, morreu em 2 de agosto no Rio de Janeiro.
Nos anos sessenta, morou em Curitiba, foi locutor da Guairacá, Tingüí, Tarobá e apresentador do telejornal da TV Paraná.
Não é pouca coisa para alguém que era gago e por força de vontade e muito exercício se curou. O Wambier teve de sair daqui por causa de um ato digno que fez, mas isso eu só vou contar no fim.
Foi para o Rio e lá fez a brilhante carreira que não conseguiu fazer aqui por causa de seu ato digno.
No Rio, começou como locutor da Rádio Globo e chegou a redator-chefe do badalado radiojornal "O Seu Redator Chefe". Nos anos setenta foi para a Alemanha, trabalhar na Rádio Alemã. Ficou por lá sete anos fazendo programas de rádio para o Brasil e Portugal, tradução, locução e dublagem de filmes para a Transtel.
Ainda nos anos setenta, volta a o Rio.
Continua trabalhando para rádio alemã fazendo programas, agora em alemão e documentários para a Transtel.
Monta estúdio de gravação de som e vídeo e realiza documentários.
Começa a lecionar rádio-jornalismo na PUC-RJ, onde também produz programas.
Ficou na PUC até sua morte.
Mas, voltemos ao Paraná. 1953, Wambier apresentador do telejornal da TV Paraná, dos Diários Associados que mantinham também o jornal Diário do Paraná. Acontece a primeira greve de jornalistas e gráficos em Curitiba por melhores salários. A adesão é total, todos os jornais parados, inclusive Abdo Aref Khoury e Ali Bark, diretores do Diário Popular, abrem seu jornal para os jornalistas rodarem o "Jornal da Greve", editado por Samuel Guimarães da Costa. Já o Diário do Paraná, do ultradireitista Adherbal Stresser, quer derrubar a greve vitoriosa e é lá que se concentram os piquetes.
Adherbal Stresser chama a polícia e vem um caminhão do Corpo de Bombeiros, com ordens do Chefe de Polícia, ítalo Conti, de atropelar os grevistas.
Os jornalistas Adherbal Fortes Jr., Luiz Geraldo Mazza e Walmor Marcelino deitam-se na frente do caminhão.
Surpreendentemente, Miguel Zacarias, delegado do DOPS, encosta seu revólver na cabeça do soldado motorista e grita: "Se avançar eu te mato!"
Adherbal Stresser não se dá por vencido.
Com seu filho Ronald e alguns fura-greves rodam uma edição reduzida do Diário do Paraná, mas os piquetes estão firmes e não conseguem distribui-la, nem os jornaleiros aceitam.
Wambier chega para apresentar o Diário do Paraná na TV, na TV Paraná, da mesma organização, no prédio ao lado. A televisão era ao vivo naquele tempo. O jornal entra no ar, a primeira notícia é sobre a greve, versão Adherbal Stresser.
Wambier pensa a notícia, olha firme para a câmera e diz com sua bela voz:
- Esta notícia é uma mentira e eu me recuso a ler.
Perdeu o emprego na hora, o resto vocês sabem.
Quando eu soube da morte do Wambier, começaram a me vir lágrimas aos olhos, mas me lembrei de tudo isso e parei: a gente não chora por um homem digno, a gente sorri para a vida.

Valêncio Xavier, escritor e historiador

Histórias do Paraná - Falcão

Histórias do Paraná - Falcão

Falcão
Nilson Monteiro

Que magias trouxe em suas asas carijós, que romperam 25 mil quilômetros à procura do sol?
Que mistérios lhes foram reservados em meio às espécies para merecer dos imperadores chineses extrema consideração, símbolo de prestígios e poder, intocável, que provoca decapitação a quem lhe atravesse a tirar a vida?
Os milhares de olhos grudaram no topo do edifício Associação Rural, no coração de Londrina, à procura da majestade, indiferente, exposta às lambidas do sol na cidade verânica, feito largato.
Posudo, estrela, transformado em brilho municipal.
Mais procurado que manchete, provocou torcicolo em criança e adultos.
Assanhou.
Solitário, desde quando despediu-se do gélido Hemisfério Norte.
Solitário, no pano azul do céu londrinense.
Solitário, no temor às outras aves.
Seu vôo é certeiro em direção às vitimas — pombas, pardais e outras aves anarquistas nas frondosas árvores da praça.
Impiedoso: mata.
Feito carcará no sertão nordestino.
Fome na favela do O.K. Porém nem tudo é prepotência.
Os pequenos pássaros vingam-se de sua beleza pela própria natureza, comendo insetos envenenados por inseticida.
Ele, ao alimentar-se dos pássaros, destrói sua realeza, extingue sua espécie.
Para se manter, é necessário voar mundo.
No ano passado, na mesma época, também encantou Londrina, com suas penas carijós, e só a abandonou quando o inverno veio chegando, manso, cinza. "Espécie esquisita", resmungou Valdevino Cruz, zelador do edifício onde a majestade fez sua morada.
Ele, peregrino, a nova atração desta aventureira cidade de pouco mais de meio século, parece rejeitar o adjetivo.
Posa, sim, como a ave mais perfeita do mundo.
Este, o que pousou na curiosidade londrinense, parece certo disso.
Outros de sua raça, parece lembrar, vivem em palácios como os da rainha Elizabeth ou do então primeiro-ministro soviético Tchernenko ou de reis da Arábia Saudita.
Paradão, com suas asas recolhidas, parece endossar o valor que os homens estabeleceram para sua espécie.
Quem olha para sua beleza sabe porque os Papas, na Idade Média, o preservavam tanto, chegando a crucificar atrevidos que sonhassem em matar um deles.
Paradão, parece debochar de armadilhas, arapucas, gaiolas, estilingues, setas, cadeias quaisquer.
Ninguém consegue passar ileso ao belo. Há até o caso de um velhinho, no Centro Comercial, que deixou de procurar pernas carnudas com seu binóculo para fixar suas vistas, já fracas, nas penas.
Fiquei sabendo até que algumas lojas, asfixiadas pela recessão, receberam um novo sopro de vida com a venda, maiúscula, de binóculos.
Ontem, cedo, porém, nuvens carrancudas atrapalharam o espetáculo: definitivamente, o peregrino não gosta de frio e não veio para posar em seu palco.
Escondeu-se? Frustrou a quem queria endoidar com a sua beleza.
Bateu asas à procura do Sol? Foi raptado por ornitólogos? Quem perdeu, perdeu, vaticinou Valdevino.
É provável que volte, quem sabe? Quem sabe deste cigano? Ano que vem, talvez, a cidade repita uma pergunta surrada neste dia: "Já viu???"

Nilson Monteiro, jornalista e poeta.

Histórias do Paraná - Duas histórias históricas

Histórias do Paraná - Duas histórias históricas

Duas histórias históricas
Flora Munhoz da Rocha

São duas histórias que eu posso focalizar com precisão, porque ambas tiveram como árbitro o presidente do Paraná Affonso Camargo (naquela época governador dizia-se presidente).
A primeira história é a briga do Paraná com Santa Catarina.
Brigaram feio mesmo.
Isso foi há muitos anos.
Para mais de século -quando da emancipação política do Paraná que se desmembrava de São Paulo.
Aí que Santa Catarina discordou da linha divisória que estabelecia os limites no sul, entre os dois Estados.
Os catarinenses queriam porque queriam ampliar seu território com 47.000 quilômetros quadrados da área que nos fora destinada.
Decorrente a guerrilha denominada "Questão de Limites", que se prolongou ao longo dos anos
- de 1853 a 1916. Cada qual querendo ganhar na base do tiroteio.
Morreu gente.
Um horror.
Mudavam-se os presidentes e nada.
Até que Santa Catarina começou a ganhar pontos, vencedora de três sentenças judiciárias. E que tinha como trunfo no governo federal o Ministro do Exterior, o catarinense Lauro Muller.
Nessa época, era presidente do Paraná Affonso Camargo, que além de chefe político era perspicaz advogado e percebeu a iminência de perda total se o Paraná não propusesse um acordo imediato.
Feito o acerto, os dois presidentes dos Estados conflitantes assinaram, no dia 20 de outubro de 1916, diante do Presidente da República Wenceslau Braz, o acordo que punha fim às desavenças e o Paraná salvava para si área onde situam-se hoje 30 municípios: Porto Vitória, General Carneiro, Bituruna, Palmas, Mangueirinha, Clevelândia, Chopin-zinho, Coronel Vivida, Pato Branco, Mariópolis, Vitorino, Itapejara, São João, São Jorge, Dois Vizinhos, Verê, Francisco Beltrão, Renascença, Marmeleiro, Enéas Marques, Salto do Lontra, Salgado Filho, Santa Isabel, Realeza, Ampere, Ipanema, Planalto, Pérola do Oeste, Santo Antônio, Barracão.
A segunda história é de como surgiu Londrina.
Nessa mesma época Affonso Camargo Presidente, ele não se conformava das férteis terras do norte do Estado permanecerem ilhadas por falta de estradas que as unissem à capital e ao porto.
Daí que fez contrato com uma companhia inglesa que se comprometia a construir uma estrada de ferro em troca de área lá no final da linha. E nessa área, anos mais tarde, os ingleses fundaram a cidade de Londrina.

Flora Munhoz da Rocha, ex-primeira dama do Estado, é cronista

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Histórias do Paraná - Dois Presidentes da República paranaenses

Histórias do Paraná - Dois Presidentes da República paranaenses

Dois Presidentes (da República) paranaenses
Túlio Vargas

Quando as força republicanas riograndenses, a mando do bravo David Canabarro, invadiram a Província de Santa Catarina, ocupando a cidade de Laguna, a 22 de julho de 1839, tais foram as adesões e carinhos que receberam da população, que o comandante revolucionário acreditou que lhe estava reservada a missão de libertador nas costas atlânticas do continente, igual à que Simão Bolívar cumprira além dos Andes. E o que nos conta Ermelino Agostinho de Leão, no volume 6 do Dicionário Histórico e Geográfico Paranaense.
Canabarro convidou a Câmara Municipal de Laguna a "declarar já e já, solenemente, a nação catarinense livre e independente, formando um Estado republicano constitucional". Era a República Juliana.
Procede-se, em seguida, a eleição para presidente e vice-presidente. A escolha dos eleitores convocados recaiu sobre o tenente coronel Joaquim Xavier Neves para presidente e padre Vicente Ferreira dos Santos, vice-presidente. O que pouca gente sabe é que ambos eram paranaenses, nascidos em Paranaguá. Tio e sobrinho.
Joaquim Xavier Neves transferiu-se ainda jovem para a vizinha Província.
Herdara dos seus maiores as virtudes cívicas que deveriam torná-lo catarinense.
Fazendeiro opulento, mantendo transações do comércio de tropas os estancieiros gaúchos e gozando do mais largo prestígio, foi natural que quando os republicanos riograndenses projetaram a conquista de Laguna e a proclamação da República, o seu nome despontasse na preferência, por ser capaz de arrastar a população do lugar para a causa revolucionária.
Era ele o fiel da balança naquela emergência.
Sua situação pessoal e política tornou-se delicada ao ser detido em pleno domínio das tropas imperiais.
Seus passos eram constantemente espionados.
Viu-se obrigado a ceder sob as pressões legalistas a assumir o comando da praça de São José, em oposição à própria corrente que o elegeu presidente.
Serviu constrangido ao Império para evitar mal maior aos seus.
Faltou envergadura para a missão de herói; mas lhe sobraram virtudes para torná-lo benemérito.
Assumiu, então, o governo de efêmera República o padre Vicente. O sacerdote parnanguara foi um predecessor do regime, quiçá o primeiro filho do Paraná que sonhou e realizou a República.
Francisco Negrão, notável linhagista, informa que ele era filho do tenente Antônio dos Santos Pinheiro, que residia em Antonina, no sítio dos Pinheiros, próximo de seu cunhado tenente coronel Francisco Gonçalves Cordeiro, o Velho, que exerceu funções de relevo na região. O pai, escrivão da Ouvidoria Geral, mudou-se para Paranaguá, onde nasceu esse filho predestinado a papel tão importante nos eventos revolucionários do século.
O sonho da República Juliana durou pouco tempo.
As tropas imperiais varreram do território catarinense as forças de ocupação.
Joaquim Xavier Neves livrou-se do êxodo e dos sofrimentos impostos aos vencidos. O padre Vicente, que se retirou com as tropas de Canabarro, avançado em anos, teve de abandonar a batina e passar dias amargos na insegurança dos refúgios.
Tal é a sina dos que ousam (sem êxito) mudar o curso da história.

Túlio Vargas ex-deputado, membro da Academia Paranaense de Letras

Histórias do Paraná - Um ato de bravura

Histórias do Paraná - Um ato de bravura

Um ato de bravura
João Carlos Calvo

A vida humana é a grande e permanente usina geradora de fatos.
Sem ela, não haveria estórias nem história.
Esta, aliás, é composta por aquelas, devidamente ordenadas, testemunhadas e registradas.
E assim que "caminha" a humanidade: produzindo fatos.
As estórias contam de tudo.
- Do bom ao ruim.
- Do belo e do feio.
- Da decência e da indecência.
- Do medo e da bravura.
Ah! A bravura! Dela, vou lhes
falar mais adiante.
Houve, em todo o Paraná, lá pelos idos de 1955 a 1961, uma )>rande e generalizada insatisfação porque, principalmente em determinadas regiões, o progresso queria chegar a qualquer custo, sem pedir licença!
Deparava-se porém, com a baixa ou nenhuma qualidade dos serviços dos setores públicos, tão necessários quanto essenciais, para ilar suporte àqueles tempos de explosão desenvolvimentista.
A falta de energia elétrica linha primazia.
Era natural a preocupação das comunidades, porque receavam que as oportunidades que surgiram passassem, e não houvesse novas ocasiões para recuperá-las ou para
outra chance.
Isto as enchia de ansiedade.
Daí, muitas das atitudes tomadas eram movidas pela emoção ou até pela insensatez em alguns casos.
Certa vez, o povo de Apucarana, estimulado por verberações mais extremadas, foi convidado para se reunir em praça pública num determinado dia.
Nesse "meeting", muitos discursos vibrantes, batendo na mesma tecla, e com a mesma proposta conclusiva:
- Não adiantam os "remendos" que a Copei vem fazendo na sua usina (diesel). São apenas paliativos e estão atravancando o surto de crescimento que empolga a vida de cada cidade da nossa região. Não há outra solução.
Vamos, agora, em marcha, em direção da Usina.
Vamos destruí-las. O governo terá que fazer alguma coisa. Só assim fará, algo novo e melhor.
Gritos histéricos de apoiado, apoiado, apoiado... A turba, movida pelo estímulo, iniciou a caminhada em direção ao alvo. O policiamento era insuficiente, diante do número de manifestantes.
Quando chegaram lá, a surpresa! Diante da usina, envolto à Bandeira Nacional, como sua única proteção, lá estava, expondo a própria vida, o engenheiro, moço, chefe do serviço.
Pai de crianças pequenas e que precisavam dele como os filhos necessitam dos pais, ele não vacilou e optou, expontaneamente, por este ato de bravura, numa imensa lição de coragem e civismo.
A massa, surpreendida diante deste gesto de coragem, tremeu.
Tremeu e respeitou. Não teve "forças" para jogar a primeira peDra. Se o tivesse feito, por certo existiria, como homenagem, alguma usina, em algum lugar, com o nome Engenheiro Domingos Prata Barbosa.
E assim, com letras douradas, que vem sendo escrita a história do Paraná.

João Carlos Calvo, engenheiro àvil

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Histórias do Paraná - Escravos brancos

Histórias do Paraná - Escravos brancos

Escravos brancos
Marina Martins Gouveia

Durante muitos anos, uma larga faixa de densa floresta na fronteira oeste do Estado, entre os rios Paraná e Piquiri, foi palco de uma das mais vergonhosas páginas de nossa história.
Nessa região então desabitada de brasileiros, duas grandes empresas argentinas exploradoras de nossa erva-mate estenderam seus tentáculos e submeteram centenas de trabalhadores, nas duas primeiras décadas do século, a uma infamante escravatura branca.
Coelho Junior, sertanista, topógrafo e escritor curitibano, participou de uma expedição pioneira à região, em 1911, chefiada pelo Sertanista Edmundo Mercer, Num livro que editou anos depois, Coelho Junior descreve, indignado o que viu então.
As empresas argentinas Alica e Companhia Mate Laranjeira eram, de fato, as senhoras da área.
Sessenta quilômetros a jusante de Sete Quedas, último ponto navegável do Rio Paraná em território paranaense, vindo do Sul, cada uma das empresas mantinha seu porto privado — Porto Mendes e Porto Alica -, onde embarcavam suas produções de mate para Argentina e Uruguai.
Uma ferroviária particular de 60 km ligava os portos fluviais aos escritórios centrais e armazéns, próximos a Guaíra.
Também de Guaíra saía a estrada precária que levava à zona de produções da empresa Alica ou Artaza, mais de cem quilômetros mata adentro, num lugar chamado "Pensamiento". Para ali eram levados os escravos brancos.
Quase todos paraguaios, os trabalhadores transformados em escravos — os chamados "mensus" — eram aliciados em Posadas, cidade Argentina às margens do Rio Paraná, muito procurada pelos paraguaios desempregados. O método usado pelos aliciadores das companhias era infalível: falavam de um verdadeiro "eldorado" rio acima, ótimo salário, comissões por produção, alojamento e alimentação de graça... e muitas e belas mulheres.
Como argumento definitivo, faziam um gordo adiantamento em dinheiro. A armadilha estava armada.
Nessa mesma noite, o paraguaio era arrastado para uma noitada em casas de jogo e prostituição, das quais irremediavelmente, só saía depois de aliviado, literalmente, do último "peso". Sem dinheiro e com dívidas, ao paraguaio não restava outra alternativa que seguir com a companhia para as matas misteriosas do Paraná.
A viagem até Guaíra - em simpáticos vapores e ferrovia — até era agradável. A animação aumentava com o baile promovido num dos galpões da companhia, onde se alojavam as moças contratadas.
Era a última festa, ao final da qual o "mensu" tinha o direito — e obrigação — de escolher uma mulher para a sua companheira no erval.
Eram também paraguaias, muito jovens, quase crianças.
No dia seguinte, bem cedo, com a viagem até o erval, começava para o "mensu" a vida de escravo branco.
A rotina, dali para a frente, seria trabalhar todos os dias desde antes do nascer do sol até depois do poente.
Alimentação sempre a mesma: uma gororoba de milho cozido e "tererê", o chimarrão frio.
Para dormir, ranchos precários, frios e úmidos.
Dinheiro, nenhum — a dívida contrída em Posadas, em vez de diminuir, aumentava todo dia.
Mesmo no meio da selva, as companheiras dos paraguaios eram induzidas pelos capatazes da companhia a comprar vestidos de seda e perfumes franceses, fiado. E ainda havia o desconto do rancho, da alimentação, das ferramentas...
Fugir? Na direção leste, cem quilômetros de mata separavam o
erval do povoamento mais próximo, a nascente Campo Mourão.
Na outra direção, só existia a estrada da vinda, vigiada em toda sua extensão pelos guardas armados da companhia, os "perros" (cachorros), que não pensavam duas vezes antes de disparar nos que tentavam fugir. "Não são poucos os esqueletos humanos encontrados pelas cercanias", escreveu Coelho Junior.
Apesar das denúncias feitas pelos sertanistas na volta a Curitiba, em 1911, aquela situação desumana perdurou até 1923, quando os escravos brancos - dois mil na companhia Alica - foram libertados pelas forças revolucionárias do general Izidoro Dias Lopes.

Marina Martins Gouveia de Toledo, professora aposentada e pesquisadora.

Histórias do Paraná - A guerra Paraná x Golpe

Histórias do Paraná - A guerra Paraná x Golpe

A guerra Paraná x Golpe
Valêncio Xavier

Em 1961, com a renúncia de Jânio Quadros, os ministros militares querem impedir a posse do vice-presidente João Goulart, então em viagem oficial à China Comunista.
No Rio Grande do Sul, o governador Leonel Brizola inicia a reação contra o golpe militar com a adesão do general Machado Lopes, comandante do III Exército. O clima no país é de guerra civil.
O golpista ministro da Guerra, marechal Odilo Denys, manda tropas para cruzarem o Paraná em direção ao Rio Grande do Sul e enfrentar as tropas gaúchas, que já tinham tomado pontos estratégicos em Santa Catarina. O porta-aviões Minas Gerais já se deslocava para as costas do Rio Grande do Sul para invadi-lo.
Em Curitiba, o prefeito Iberê de Matos é a favor da Legalidade, a dúvida ficava com os militares aqui sediados: iriam manter-se neutros e deixar passar as tropas golpistas, ou iriam combatê-las? No momento da decisão, o general Benjamim R. Galhardo, comandante da V Região Militar, sofre um estranho "ataque cardíaco" e seu Estado maior é quem dá ordens para deter os "invasores" na divisa do Paraná com São Paulo.
Estranhamente, o comando das tropas é dado a um major, quando operações dessa natureza exigem um oficial mais graduado, de coronel para cima.
Organiza-se um destacamento de 400 homens que seguem, em 28 de agosto de 1961, pela BR-2 (hoje Rodoviária Regis Bitencourt) em direção à divisa com São Pauio.
Tomam posição, bloqueiam trechos da estrada e minam pontes da divisa.
Ao contrário dos paranaenses, as tropas paulistas chegam com 3.000 homens bem equipados, tanques e tudo o mais. São do mesmo exército e, antes do combate, é necessário parlamentar. O general golpista Ulhoa Cintra vem ao meio da ponte na divisa e, de cara, quer falar com oficial superior e não com o Major, coisas de hierarquia. O major legalista não se intimida e diz que não disparará o primeiro tiro, mas não deixará ninguém passar.
Ulhoa Cintra olha para a outra margem do rio e vê um jipe do 13 R.I. de Ponta Grossa e imagina que todas as tropas de Paraná estão do outro lado.
Mal sabia que o jipe viera de Ponta Grossa, no dia anterior, e fora posto ali para impressionar porque era o único veículo que funcionava direito.
Fica cada um do seu lado, numa guerra de nervos.
Aviões da FAB sobrevoam as tropas paranaenses jogando folhetos dizendo que os soldados legalistas são considerados desertores e podem ser fuzilados.
Os paranaenses conquistam a população da região que vêm ajudá-los, tudo funciona, até os botecos de beira de estrada.
Comida e cigarros chegam de Curitiba mandados pela população.
Do lado de lá, com as medidas antipáticas do general golpista, nada funciona, os legalistas acabam tendo de mandar até comida para os inimigos.
O tempo passa, e os políticos lá em Brasília inventam a emenda parlamentarista e Jango finalmente vai ser empossado, a paz chegou.
As tropas inimigas se juntam para comemorar e, de cara, organizam uma partida de futebol, placar 0X0. Entre mortos e feridos salvaram-se todos.

Valendo Xavier, escritor e historiador

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Histórias do Paraná - Ao pé das letras

Histórias do Paraná - Ao pé das letras

Ao pé das letras
Roberto José da Silva

Dezembro de 1853. A greve na aviação comercial forçava os pilotos de táxi-aéreo a um sobre-esforço para suprir as faltas dos Douglas, Convair e Scandia das companhias.
Voávamos desde o nascer até o pôr-do-sol. A maioria das viagens era de Londrina para Curitiba e vice-versa.
Eu já estava pilotando no limite da resistência.
Quase me transformara, como os outros companheiros, num piloto-automático, decolando, ganhando altura, nivelando, baixando, aproximando, pousando... e repetindo todo logo em seguida.
Naquela tarde eu taxiei o Bonanza PT-AHO até a cabeceira 17 do Bacacheri, com três passageiros.
Dos que estavam no assento traseiro não me lembro.
Mas à minha direita, na frente, ia o Michel Dib, chefe do Serviço de Trânsito de Cornélio 1’rocópio, devidamente fardado (brim cáqui) e com seu quépi branco. )á conhecia Dib de outros vôos.
Magro, traços bem marcados de árabe, fala mansa, jeito tranqüilo.
Decolei e aproei Londrina, ganhando altura.
Fazia um calor sufocante, o sol parecia querer nos fritar dentro do avião.
No ar quente e pesado, o lionanza se arrastava como num pote de geléia, pesado e com má vontade aerodinâmica.
De súbito eu — que pilotava librado em pensamentos extra-aeronave — ouço o rechinar das engrenagens do trem-de-pouso baixando.
Levo um susto, corto a manete de aceleração, puxo o manche para trás, "matando" a velocidade e procuro, num átimo, localizar a "pane".
Um trem-de-pouso jamais pode ser baixado em linha-de-vôo, em velocidade de cruzeiro.
Checo o painel e vejo a chave de comando do trem na posição de "down" (baixo). Não entendi, eu não havia comandado trem baixo!
Dib, encostado na porta, braços cruzados e quépi com a pala sobre os olhos, estava quieto, como um anjinho:
- Dib, ô Dib! Você mexeu aqui? - Perguntei quase gritando.
- Eu? Ué! — pensou alguns segundos — Mexi sim!
- Mas, como? Essa é a chave de trem-de-pouso, tem uma trava de segurança por baixo! Por que fez isso?
A inocência da resposta do Dib me fez rir:
- Wilson, é que estava muito quente aqui dentro. Aí, comecei a olhar, olhar e vi escrito "Landing Gear".
Gear, pensei, é frio. Aí, empurrei essa chavinha pra baixo, ué!...

Wilson Silva, ex-aviador no Norte do Paraná, jornalista.

Histórias do Paraná - Na Pensão da Dona Odete

Histórias do Paraná - Na Pensão da Dona Odete

Na Pensão da Dona Odete
Roberto José da Silva

O tapa na boca explodiu inesperadamente.
Antes, o olhar espantado daquela freira de pele branca da Sagrada Família.
Em sua inocência dos 8 anos, Roseli não entendeu a reação que virou comentário do dia pelos corredores do Internato Meninojesus. Só tinha repetido ali uma das palavras usadas pela loira Carla, sua amiga dos finais de tarde.
Não contou o ocorrido quando voltou para o quartinho de pensão depois da aula.
Carla também não soube.
Morava no casarão ao lado, da Rua 13 de Maio, outra pensão da mesma dona Odete.
Ela e mais uma dúzia de moças que saíam para trabalhar no início da noite.
Dona Odete tinha recomendado à menina que não freqüentasse a pensão vizinha.
Mulher de boate.
Na cabeça da criança aquilo não tinha o menor significado.
Seria algo relacionado ao mar, bote, barco, talvez... Não poderia ser coisa ruim.
A Carla era tão boazinha. E linda.
Tinha televisão no quarto bem arrumado e a deixava assistir tudo enquanto sua mãe, na casa ao lado, ficava deitada na cama, fumando, olhar fixo no teto, até perto da meia-noite, desligada do mundo.
Ah! Como era bom acompanhar o seriado Nacional Kid. E a Carla parecia atriz de cinema.
Trocava de roupa com naturalidade na frente da menininha que ficava extasiada com sua beleza.
Quando a noite chegava, aquela moça de 23 anos, olhos castanhos, começava a se arrumar para o trabalho.
Vendo aquele corpo nu bem feito, Roseli se perguntava por que as freiras do internato só deixavam o rosto e as mãos expostas.
Ganhava uns trocados, lanches e ouvia histórias da amiga.
Um dia, depois de uma briga entre algumas moradoras daquela pensão, Carla lhe contou que, na noite anterior, um bonitão de cabelos negros sedosos tinha estraçalhado corações ao entrar no "Quatro Bicos". Enquanto suas companheiras quase se engalfinhavam para chamar a atenção do boa-pinta, ela ó, nem te ligo. O galã de subúrbio, finalizou uma Carla cheia de orgulho, ficou louco por ela e, para chamar sua atenção, lançava petardos de pipocas em sua direção.
Anos mais tarde Roseli descobriu que tinha dito um palavrão na frente da freira.
Seria pecado? — questionava-se enquanto recordava a facilidade e doçura com que ele saía da boca da Carla.
Roseli cresceu, casou, teve dois filhos e, hoje, aos 32 anos, volta e meia lhe vêm à lembrança alguns momentos passados naquela pensão da Dona Odete.
Onde andará Carla, a amiga que usava roupas lindas e pintava com maestria e rapidez as unhas da mão com esmalte vermelho cintilante?
Era um doce de pessoa e vivia feliz, sorriso sempre estampado no rosto.
Um dia conseguiu levar para a pensão um amigo que era um astro.
Negro alto e forte, goleiro e ídolo do Coritiba nos anos 60. Foi apresentado a Roseli naquela tarde ensolarada de domingo.
Plouve festa regada a cerveja. A menina ganhou uma gasosa de framboesa.
Tudo aquilo era belo, como o corpo nu e inocente de Carla.
As freiras? Para Roseli continuam um mistério.

Roberto José da Silva, jornalista

Histórias do Paraná - Os seis cargos de Desembargador

Histórias do Paraná - Os seis cargos de Desembargador

Os seis cargos de Desembargador
Marino Braga

Em 1979 foi baixada pelo Presidente da República A Lei Orgânica da Magistratura Nacional, a LOMAN, como ficou conhecida.
Seu objetivo era o de estabelecer novas normas de organização e funcionamento da justiça brasileira.
Principalmente no que dizia respeito à segunda instância, ou seja, aos tribunais de justiça.
No espaço de tempo entre a publicação da lei e a sua vigência muita coisa devia ser mudada, muitas adaptações haveriam de ser feitas.
O Tribunal de Justiça do Paraná contava, na época, além de seus vinte desembargadores, com seis juizes substitutos de 2" instância, o que correspondia, na realidade, a seis desembargadores substitutos, pois as atribuições daqueles juizes eram as de substituir os desembargadores efetivos em suas licenças e impedimentos, e de compor as Câmaras de Férias então existentes.
A LOMAN extinguiu esses cargos e ao mesmo tempo estabeleceu regras que em nosso caso, impediam o aumento do número de membros dos Tribunais, r.stávamos na iminência de perder os referidos cargos.
Quando o Tribunal, por mim presidido, constatou a impossibilidade de funcionar satisfatoriamente sem os seus desembargadores substitutos, a data da vigência da Loman se aproximava celeremente. A única solução seria a criação de seis cargos de desembargador, aumentando de 20 para 26 o número de seus integrantes efetivos.
Mas, então, o prazo para isso já era muito curto.
Fui ao Governador do Estado, Ney Braga, e expus a situação. S. Exa, estendeu suas mãos ao judiciário e nos ofereceu integral apoio.
O Tribunal de Justiça preparou e encaminhou à Assembléia Legislativa um anteprojeto de lei pedindo a criação dos seis cargos.
Levei-o pessoalmente ao Presidente da Assembléia e ponderei a ele que se o projeto não fosse aprovado antes da vigência da Lei Orgânica, o que aconteceria em poucos dias, de nada adiantaria o empenho do Governador.
O deputado Fabiano Braga Côrtes, que presidia a Assembléia, chamou os líderes do governo e da oposição, deputados Erondi Silvério (no momento representado pelo deputado Ayrton Cordeiro, vice-líder) e Nilzo Sguarezi, e lhes pediu o apoio de suas respectivas bancadas.
Todos, na Assembléia Legislativa, também estenderam suas mãos ao judiciário.
O projeto foi aprovado no penúltimo dia do prazo e o Governador Ney Braga o sancionou ainda a tempo de ser publicado no Diário Oficial do último dia.
O Tribunal perdeu seus juizes substitutos mas, coisa inédita, passou de 20 para 26 desembargadores, salvando-se, assim, de uma "capitis diminutio" que lhe seria imposta por uma lei federal.
O fato de hoje, cerca de 14 anos depois, o Tribunal contar com apenas mais um desembargador, dá bem a medida do alto alcance da oportuna providência.
Mas, o que há de mais importante a se ressaltar no episódio é o momento de grandeza institucional que o Paraná viveu, com os seus poderes constituídos se compreendendo e se ajudado entre si.
Para o bem de toda a sociedade.
E para que o expressivo acontecimento não venha a restar ausente de nossos fatos históricos é que encaminho este depoimento e esta contribuição à coluna "Histórias do Paraná".

Marino Braga, Desembargador aposentado e membro do Centro de Letras do Paraná

terça-feira, 24 de junho de 2014

Histórias do Paraná - Matéria de memória

Histórias do Paraná - Matéria de memória

Matéria de memória
Francisco Camargo

Ficava no Edifício Asa, na rua Voluntários da Pátria, espaço mínimo, quase uma lojinha.
Tinha saída para a galeria, mas era na parte da frente que se concentrava a maior incidência de QI, talento, ousadia e mau-caratismo por metro quadrado que a imprensa paranaense já registrou em sua história.
Ali funcionava a "Última Hora", o jornal do Samuel Wainer, o jornal dos comunas, como diziam alguns. O jornal melancia, como preferiam outros: verde por fora, vermelhinho por dentro.
A "Ultima Hora" marcou época na imprensa brasileira e a edição do Paraná, a UH/Paraná, não poderia ficar fora dessa revolução gráfica, editorial e administrativa.
Tudo compacto, como o próprio jornal, que fazia de suas colunas assinadas (Ceüna Luz, Silvio Back, Adherbal Fortes e muitos outros) o forte da informação, recheada por reportagens que, não raro, rompiam as barreiras do tolerável em matéria de ética na provinciana Curitiba do início dos anos 60. Quando não desabrochava no sensacionalismo mesmo, no irresponsável, nos exageros ditados pela ânsia que impunha "vender jornal" como palavra de ordem.
Na parte inferior da loja, ficavam a administração, o departamento comercial e, mais que apertado, o laboratório fotográfico.
Subindo a escadinha, o serpentário.
Ou covil, como iria preferir a extrema direita.
Um time de jornalistas de fazer inveja, até hoje, a qualquer jornal brasileiro.
Citar os talentos, aqui, traz o risco de se cometer injustiças.
Contam que dinheiro não era problema.
Getulismo, janguismo, Banco do Brasil por trás.
Altos salários, também não.
Contratavam-se quem a UH desejasse.
O mais fantástico era a confecção do jornal.
Pela manhã e à tarde, seguiam as matérias e fotos para a matriz, a Companhia Paulista Editora de Jornais, em São Paulo, onde o material era diagramado, composto e impresso. À noite, o plantão fechava a edição com as notícias de, como fugir disso, última hora.
Um drama.
Via telefonista, a ligação de Curitiba para São Paulo poderia levar horas e horas, o que, até hoje, em jornal, significa uma eternidade e sofrimento.
O jornal vinha pronto de São Paulo.
De madrugada. Não era só Curitiba.
Tinha Londrina, Ponta Grossa e outras praças fortes, como
Paranaguá, onde, com greve no porto, o reparte atingia dez, doze mil exemplares.
Uma marca em matéria de tiragem (até hoje, em determinados casos).
A UH, com seus traços azuis
- fio ponto 8, ponto 12 - marcou época, de fato.
Se perpetrou desatinos e cometeu injustiças, arrasando vidas e profissões, não dá para negar que fez escola.
Lembrá-la em seus detalhes, entranhas, facetas e episódios históricos fica difícil e cabe a quem trabalhou lá e construiu sua trajetória.
Para nós, simples espectadores de uma parte da história recente da imprensa, resta apenas tentar um registro/homenagem. E deixar a sugestão aos mais novos na profissão: que tal dar um chego na Seção Documentação Paranaense da Biblioteca Pública do Paraná e, como o paleontólogo do Spielberg, via DNA, resgatar o passado?
Mesmo que se revele um monstro, vale a pena, posto que encerra lições de um elo massacrado mas nunca perdido.

Francisco Camargo é jornalista.

Histórias do Paraná - Os morrelenses da PM

Histórias do Paraná - Os morrelenses da PM

Os morrelenses da PM
Marco Aurélio de Moraes Sarmento

A cidade de Morretes, situada na região litorânea do Estado do Paraná, famosa pela "invenção" do barreado, comida típica das araucárias, cuja "patente" é disputada "pau-a-pau" com os "capelistas" da vizinha cidade de Antonina, deu inuitos de seus filhos para a milícia do Estado.
Inúmeros morretenses atingiram o oficialato superior e, quase nunca, qualquer turma da hoje imponente Academia Policial Militar tio Guatupê, deixou de contar com representantes da bela e antiga
Cidadezinha.
Os nomes de tradicionais famílias morretenses como: Malucelli, Consentino, Foltran e
Hunziecker, entre outros, pontificaram e formaram tradição na Polícia Militar do Paraná.
Mas, Morretes, não forneceu a milícia, apenas Oficinas.
Muitos e inuitos Graduados e Soldados, alguns deles heróis, eram oriundos tia terrinha que é cercada de elevações
belíssimas, como o importante Pico do Morumbi.
Conta-se que, certa vez, na capital, o então Coronel Oskilde Marcos Malucelli, Chefe do Estado Maior da PM, morretense que gostava muito de medalhas e adereços, todo paramentado com inúmeros "brevets" e alamares, recebia no Salão de Honra da corporação, alguns Comandantes-Gerais oriundos de outros Estados da Federação.
No mesmo dia, chegara a Curitiba, um Cabo velho oriundo de Morretes, que tinha vindo tratar de assuntos relativos ao pequeno Destacamento PM daquele lugar.
Diz-se que o Praça nunca tinha vindo a Curitiba.
O cabo, que tinha sentado praça em Paranaguá e eu quase nunca tinha saído do pacato lugarejo que é banhado pelas límpidas águas do "Nhundiaquara", observava abismado o tamanho do Quartel do Comando Geral e, atarantado, se espanta com o incessante ziguezaguear rápido de inúmeros Oficiais e Sargentos que sequer respondem as suas caprichadas continências.
Num ímpeto, subiu a escada que dá ao alpendre do andar superior e, lá se queda a olhar embevecido o grande pátio, o antigo paiol de munições, as belas palmeiras reais quase centenárias, o intenso movimento e a banda de música que, naquele momento, executa um belo dobrado.
Um mundo novo e estranho se comparado com seu pacato Destacamento na pequena Morretes.
Andando pelo alpendre e quase já esquecido de sua missão em Curitiba, o Cabo velho, passa pela porta aberta do Salão de Honra, onde Malucelli, empolgado, faz sua exposição aos Coronéis "estrangeiros".
Após a passagem e a rápida olhadela, o velho miliciano morretense estaqueia.
Faz meia-volta e, sem dar bola para ninguém, adentra a sala repleta de Oficiais gritando com o sotaque litorâneo:
- "Oskirde", amigo "véio"! "Eta noís"! Quando é que eu podia imaginar que "ocê" tava na Força e já era Capitão, "home" de Deus!
Malucelli, ante a figura do amigo de antanho, pede licença a seus pares, sai do Salão abraça o Cabo que não via há anos e passam, os dois, a recordar do tempo em que juntos, ambos meninos, faziam estrepolias pelas ruas da velha Morretes e nadavam nas águas frias do Nhundiaquara.

Marco Aurélio de Moraes Sarmento é capitão da Policia Militar do Paraná.

Histórias do Paraná - A primeira bigorna

Histórias do Paraná - A primeira bigorna

A primeira bigorna
Albino Giombelli

Em 1960, a região Oeste do Paraná era coberta por uma mata cheia, compacta, onde muitas vezes nem a pé era possível chegar, e as primeiras picadas o povo mesmo tinha que fazer. A colonização estava começando e muitas histórias, umas reais, outras não, mexiam com a imaginação de todo mundo, falando em crimes, grilos de terra, assassinatos na calada da noite.
Aportei nessa terra com a profissão de ferreiro, muito novo, recém casado, vindo lá de Concórdia, Santa Catarina, como milhares de outros homens, gaúchos e catarinenses principalmente, que vinham em busca de uma vida melhor e, por que não dizer, da riqueza que essa terra poderia gerar.
Como qualquer um que chegava aqui, naquela época ou me assustei com essas histórias que contavam, com os perigos que minha mulher, tão jovem e inexperiente quanto eu, e meus futuros filhos, poderiam passar aqui.
Um dia, resolvi voltar para Santa Catarina.
Fui ao meu sogro, o seu Pascoal, e lhe comuniquei minha decisão.
Expliquei que viver aqui era muito perigoso, que minha mulher estava chorando muito, que não tinha se acostumado a morar quase no meio do mato.
Meu sogro não brigou comigo mas disse que seria um grande erro voltar, eu que era moço novo, poderia lutar muito nessa terra de oportunidades.
Matutei muito, decidi ficar.
Ao tomar conhecimento da minha decisão, minha mulher chorou 15 dias.
Mas eu já tinha até um projeto de vida: em 1980, tempo em que as máquinas já teriam derrubado as árvores e as raízes apodrecido na terra, eu poderia me tornar um revendedor de trator para toda a região.
Instalei-me em Palotina e me preparei para esperar.
De repente comecei a ver que as coisas mudavam mais rápido do que eu pensava.
Cheguei a ver cenas inimagináveis hoje.
Como, por exemplo, 300 tratores de esteira derrubando as matas, de uma vez, dia e noite. A gente passava pelas estradas e via aquelas luzes, aquele barulho, o movimento, e tinha a impressão que aquele povo estava construindo um mundo novo.
Bem mais cedo do que eu pensava, já em 1974, me tornei revendedor dos Tratores Walmet e SLC. E há 18 anos sou o maior revendedor de tratores do Brasil: Mum ano só, de safra boa, vendi 1200 tratores.
Hoje, quando converso com gente importante, de Brasília ou de
São Paulo, meu jeito de falar, com forte sotaque italiano, que nunca deixei, pode até chocar.
Outros devem imaginar como um simples ferreiro como eu, lá de Santa Catarina, chegou onde cheguei.
Agora, me sinto muito longe daquele rapaz até um pouco amedrontado que apareceu aqui em 1961. A região também já não era a mesma.
As matas desapareceram, surgiram as cidades, os prédios, o progresso enfim.
Hoje, com filhos e netos paranaenses, muito mais experiência, posso dizer que o Oeste foi e continua sendo uma terra de oportunidades.
Basta a gente ter forças de vontade de trabalhar, que os sonhos podem se realizar mais depressa do que imaginávamos.
Guardo comigo, num lugar de honra no meu gabinete de trabalho, a primeira bigorna com que trabalhei nesta terra. E ela me lembra, todos os dias, que é preciso perseverança e um pouco de coragem para vencer desafios.
Sem isso, não se faz uma vida, uma região e muito menos um País.

Albino Giombelli, empresário, foi pioneiro em Palotina

Histórias do Paraná - Maringá Maringá

Histórias do Paraná - Maringá Maringá

Maringá Maringá
Abílio Alves da Silva

"A terra prometida!" Era assim que o Norte do Paraná era mostrado, em 1948, numa extensa reportagem na revista "O Cruzeiro", espécie de Rede Globo impressa daqueles tempos.
Aventura e possível prosperidade, era tudo o que um jovem com a idade de 25 anos, cheio de entusiasmo e esperança no futuro, poderia desejar naquele momento.
Daí que pedi desligamento do batalhão do Exército onde estava engajado, na Vila Militar no Rio de Janeiro, e fui ao encalço da terra prometida.
Fui com a cara, a coragem, a força de vontade, muita disposição que só.
Sem conhecer ninguém no novo Eldorado, dinheirinho minguado no bolso. A viagem, de trem
até Ourinhos, na divisa de São Paulo com o Paraná, em locomotiva a diesel, moderna para a época
De lá pra frente, fui de "Maria Fumaça" até onde o trem podia me levar, Apucarana, o fim da linha.
Meu primeiro contato com a terra prometida" não foi, porém, lá essas coisas.
Bati perna em Apucarana sem conseguir nenhuma
colocação de emprego. "Vá mais pra frente", me aconselhavam. E fui.
De carona e até a pé cheguei em Mandaguari, procurei emprego no
escritório da Companhia
Melhoramentos Norte do Paraná e consegui colocação, não ali, mas um pouco mais para a frente.
Fui designado para trabalhar na abertura da Cidade de Maringá.
As cidades do Norte Novo, região de Londrina, já estavam implantadas há alguns anos.
No chamado Norte Novíssimo, porém, ainda tinha chão por desbravar, as cidades estavam sendo formadas por essa época.
Maringá, por exemplo, era nada ou quase nada; nem município era, o que só ocorreu em 1951.
Ganhei condução própria para ir até Maringá: um burrinho selado.
Nele, eu mais parecia um "Sancho Pança". Chegando em Maringá, fui recebido pelo Dr. Alfredo W. Niffeler no escritório da Companhia, e dele recebi a ordem de trabalho: fiscalização florestal das terras da Companhia.
Naquela época existia muito roubo de madeiras, principalmente cedro.
Daí que, é fácil imaginar, meu serviço não era dos mais fáceis, cheguei a ser jurado de morte por ladrões de madeira.
Numa noite, regressava de caminhonete quando fui emboscado na estrada da cidade.
Eles eram três, dispararam dez tiros e só acertaram dois.
Eu disparei seis, acertei apenas um. Éramos todos ruins de tiro.
Fiquei 22 dias no Hospital Maringá, do Dr. Geraldo Braga (pai de Sônia Braga) e graças a Deus dessa escapei.
Os ladrões foram presos e removidos para Londrina, onde seriam julgados.
Um jornal chegou a publicar uma manchete: "Assim como existiam juizes em Nuremberg, esperamos que aqui também existam". Juiz havia, mas os bandidos compraram o carcereiro por 100 cruzeiros e escafederam-se antes de serem julgados.
Naquele tempo havia duas Maringás, a velha e a nova, mais a vila operária, A velha tinha umas poucas casas boas, a maioria era um favelão; a nova tinha muitas casas, mas boa parte delas fechada, eram construídas só para cumprir contrato, seus moradores não passavam de 66, quase todos empregados da Cia. de terras.
Vi, portanto, Maringá nascer. E com o mesmo carinho com que acompanhei o crescimento de minha filha Marialva, a primeira mulher nascida em Maringá a se formar em Direito.
Se hoje conto essa história, é porque ela não é só minha.
Dezenas, centenas de pessoas, vindas dos mais diversos pontos do país, protagonizaram aventura
semelhante. A aventura de ajudar a nascer o hoje rico Norte do Paraná.

Abílio Alves da Silva, pioneiro na fundação de Maringá

Histórias do Paraná - Maringá Maringá

Histórias do Paraná - Maringá Maringá

Maringá Maringá
Abílio Alves da Silva

"A terra prometida!" Era assim que o Norte do Paraná era mostrado, em 1948, numa extensa reportagem na revista "O Cruzeiro", espécie de Rede Globo impressa daqueles tempos.
Aventura e possível prosperidade, era tudo o que um jovem com a idade de 25 anos, cheio de entusiasmo e esperança no futuro, poderia desejar naquele momento.
Daí que pedi desligamento do batalhão do Exército onde estava engajado, na Vila Militar no Rio de Janeiro, e fui ao encalço da terra prometida.
Fui com a cara, a coragem, a força de vontade, muita disposição que só.
Sem conhecer ninguém no novo Eldorado, dinheirinho minguado no bolso. A viagem, de trem
até Ourinhos, na divisa de São Paulo com o Paraná, em locomotiva a diesel, moderna para a época
De lá pra frente, fui de "Maria Fumaça" até onde o trem podia me levar, Apucarana, o fim da linha.
Meu primeiro contato com a terra prometida" não foi, porém, lá essas coisas.
Bati perna em Apucarana sem conseguir nenhuma
colocação de emprego. "Vá mais pra frente", me aconselhavam. E fui.
De carona e até a pé cheguei em Mandaguari, procurei emprego no
escritório da Companhia
Melhoramentos Norte do Paraná e consegui colocação, não ali, mas um pouco mais para a frente.
Fui designado para trabalhar na abertura da Cidade de Maringá.
As cidades do Norte Novo, região de Londrina, já estavam implantadas há alguns anos.
No chamado Norte Novíssimo, porém, ainda tinha chão por desbravar, as cidades estavam sendo formadas por essa época.
Maringá, por exemplo, era nada ou quase nada; nem município era, o que só ocorreu em 1951.
Ganhei condução própria para ir até Maringá: um burrinho selado.
Nele, eu mais parecia um "Sancho Pança". Chegando em Maringá, fui recebido pelo Dr. Alfredo W. Niffeler no escritório da Companhia, e dele recebi a ordem de trabalho: fiscalização florestal das terras da Companhia.
Naquela época existia muito roubo de madeiras, principalmente cedro.
Daí que, é fácil imaginar, meu serviço não era dos mais fáceis, cheguei a ser jurado de morte por ladrões de madeira.
Numa noite, regressava de caminhonete quando fui emboscado na estrada da cidade.
Eles eram três, dispararam dez tiros e só acertaram dois.
Eu disparei seis, acertei apenas um. Éramos todos ruins de tiro.
Fiquei 22 dias no Hospital Maringá, do Dr. Geraldo Braga (pai de Sônia Braga) e graças a Deus dessa escapei.
Os ladrões foram presos e removidos para Londrina, onde seriam julgados.
Um jornal chegou a publicar uma manchete: "Assim como existiam juizes em Nuremberg, esperamos que aqui também existam". Juiz havia, mas os bandidos compraram o carcereiro por 100 cruzeiros e escafederam-se antes de serem julgados.
Naquele tempo havia duas Maringás, a velha e a nova, mais a vila operária, A velha tinha umas poucas casas boas, a maioria era um favelão; a nova tinha muitas casas, mas boa parte delas fechada, eram construídas só para cumprir contrato, seus moradores não passavam de 66, quase todos empregados da Cia. de terras.
Vi, portanto, Maringá nascer. E com o mesmo carinho com que acompanhei o crescimento de minha filha Marialva, a primeira mulher nascida em Maringá a se formar em Direito.
Se hoje conto essa história, é porque ela não é só minha.
Dezenas, centenas de pessoas, vindas dos mais diversos pontos do país, protagonizaram aventura
semelhante. A aventura de ajudar a nascer o hoje rico Norte do Paraná.

Abílio Alves da Silva, pioneiro na fundação de Maringá

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Histórias do Paraná - O amor na Fazenda Fortaleza

Histórias do Paraná - O amor na Fazenda Fortaleza

O amor na Fazenda Fortaleza
Ivo Nalce

No começo do século passado, José Felix da Silva instala a Fazenda Fortaleza, nos Campos Gerais, perto de onde hoje é Tibagi, então um povoado parado.
A região era habitada pelos índios Coroados que atacavam os brancos.
José Felix transforma sua fazenda numa verdadeira fortaleza, com muralhas e alguns homens passam a atacar os índios, massacrando-os e trazendo os sobreviventes para trabalhar como escravos na fazenda. O governo dá-lhe a patente de coronel e, além dos índios, passa a atacar os garimpeiros clandestinos que faiscavam no Rio Tibagi.
As lutas contra os índios prosseguem, mas a segurança da Fazenda Fortaleza atrai agricultores que se instalam na região.
José Felix tinha fama de ser dos homens mais ricos da Província de São Paulo, a que o Paraná pertencia. E também de ser avarento e muito cruel.
Quando o sábio francês Auguste de Saint-Hilaire passa pela Fazenda Fortaleza, em 1820, conta que as provisões eram fechadas a sete chaves e, por ser José Felix odiado por seus escravos, somente seu neto de oito anos era que o barbeava. Não tinha confiança de entregar a navalha na mão de ninguém mais.
José Felix se casa com uma moça muito pobre e, dizem muito bela e aí começa um dos casos de amor mais loucos que o Paraná já conheceu.
Mulher jovem e bela com marido velho, avarento e ruim não pode dar boa coisa. A mulher contrata dois homens para matarem o marido.
Na emboscada, José Felix fica gravemente ferido, mas consegue liquidar com os dois bandidos.
Como todo mundo sabia que fora a mulher quem mandara matar José Felix, ela foi presa na cadeia em Castro, cidade que, segundo Saint-Hilaire, era então habitada por três ou quatro comerciantes, prostitutas e alguns artesãos.
Com seu dinheiro, ou poder, José Felix consegue liberar a mulher, o que ela aceita.
Traz ela de volta para a Fazenda Fortaleza e tranca-a no quarto do casal, para isso manda gradear as janelas e a única porta.
Os escravos passam a comida através das grades.
Ninguém entrava na cela.
Ninguém? Todas as noites, José Felix tirava a chave que trazia amarrada no pescoço, abria a cela e ia dormir com ela no seu leito nupcial para cumprir as obrigações matrimoniais de praxe.
Como eram as noites de amor do casal, só Deus sabe.
Ou, então,
Nelson Rodrigues, que também sabia de alguma coisinha da vida como ela é.
Talvez, como as personagens de Nelson Rodrigues, a mulherzinha gostasse de apanhar.
Mas de todo jeito parece que não muito, porque um belo dia, ou uma bela noite, ela consegue despejar goela abaixo de José Felix, um delicioso copo de vinho francês temperado com esses venenos que só os índios da região sabiam preparar.
Mas enfim, apesar de morrer com a dose, José Felix, mesmo desconfiado como era, devia estar acostumado e gostar de receber das mãos da mulher um copinho de vinho francês antes de deitarem no leito nupcial para mais uma noite de amor, ou talvez de ódio.
Isso, só mesmo o bom Deus sabe.

Ivo Nalce, historiador

Histórias do Paraná - O fantasma do Coronel

Histórias do Paraná - O fantasma do Coronel

O fantasma do Coronel
Josué Corrêa Fernandes

Chopinzinho, no Sudoeste do Paraná, é uma cidade aprazível, onde gaúchos e catarinenses se misturaram ao elemento nativo, dando origem a uma comunidade trabalhadora e ordeira.
Essa localidade já existia desde o século passado, quando ali foi estabelecida a Colônia Militar do Chopim, por ordem de D. Pedro II e com o objetivo de preservar as fronteiras nacionais da cobiça de argentinos e paraguaios.
Documentos e a própria iradição oral comprovam que, no mesmo local onde hoje se desenvolve a cidade, foi erigida a sede da Colônia, sob o comando do coronel San Thiago Dantas, ancestrais de brasileiros ilustres, como o Primeiro Ministro parlamentarista do governo Goulart () Salto Santiago, aliás, onde se construiu a grande hidrelétrica, também foi batizado em homenagem àquele intrépido desbravador.
Foi em Chopinzinho que iniciei, de fato, a minha carreira de Juiz de Direito.
A casa, onde passei a residir por primeiro com minha família, ficava bem próxima ao
fórum, num morro de difícil acesso
onde já se erguiam outras residências em meio à mata um tanto densa.
Por esses tempos, falava-se que tal lugar serviu de cemitério aos soldados da Colônia e que, por isso, desrespeitada a finalidade de campo santo, eram freqüentes as aparições de almas penadas, exigindo a desocupação da área... Filho de pai galego, nunca dei crédito a tais estórias, muito embora, no fundo, não esquecesse de velha advertência ibérica: "no creo em brujas, pero que las hay, hay"...
Meses depois que ali aportei, numa madrugada de verão forte, fui acordado pelo chamado insistente da empregada que, pálida e tremendo, dizia haver avistado uma "visagem de soldado" na orla do pequeno bosque dos fundos.
Vim até à janela e, auxiliado pela claridade da lua cheia, nada vi, mas a moça insistiu:
- Ele tava parado bem lá, perto do pinheiro; era grande, barbudo e tinha espada.
Quando fiz barulho, ele andou no meio das árvores e sumiu!
Peguei, então, uma lanterna e o revólver e me dirigi até o ponto indicado.
Iluminei para lá e para cá, nada enxergando. Não muito convicto de me aprofundar na procura, adentrei poucos passos na mata, logo tropeçando em alguma coisa.
Focalizei a lanterna, abaixei-me e vi que se tratava de um pedaço de laje com palavras escritas.
Juntando vagarosamente as letras e suprindo as que faltavam, consegui ler;
restos mortais do capitão-bacharel Francisco Clemetitino de San Thiago Dantas.
Orae por ele.
Sufocante que estava o calor, de súbito senti-me enregelado e invadido por peculiar calafrio que me cruzou o corpo de norte a sul, ouriçando-me todos os pêlos imagináveis.
Disciplinado infante do CPOR, procurei não voltar em marcha acelerada, mas normalmente, para o interior da casa, afirmando que nada encontrara.
Debaixo das grossas cobertas não consegui acalmar o inusitado frio, mas desarquivei dos fundos do meu inconsciente a oração pelas almas do purgatório, tantas vezes repetida na minha antiga função de coroinha.
E ansioso, com os olhos estatelados, aguardei o alvorecer.

Josué Corrêa Fernandes, Juiz aposentado, e Secretário de Administração e Negócios Jurídicos de Ponta Grossa em 1993

Histórias do Paraná - Bento cego

Histórias do Paraná - Bento cego

Bento cego
Valênáo Xavier

Bento Cordeiro nasceu no Registro, em Antonina, lá por 1821. Nasceu cego e pobre, filho de caboclos do nosso litoral.
Logo perde o pai, a sua mãe, Ana Maria, tem de manter o barraco da família e cuidar do filho cego.
Mocinho, Bento foi numa festança, onde os caboclos dançavam fandango batendo pé com os tamancos chumbados de chocalhos. Lá estava Chico Folião, o Rouxinol da Faisqueira, cantador de muita fama.
Chico Folião já tinha derrotado todos outros repentistas da noite.
Cada quatro porfias ganhas davam direito ao prêmio: um galho de arruda na viola e a admiração das moças.
As moças assanham Bento para desafiar o campeão, afinal ele era dono da mais bela voz do coral da igreja.
Arranjam uma viola para Bento e começa seu primeiro combate.
Chico Folião parte para o ataque.
"Nem namorar você pode porque vista não tem vive só sem ser amado sem olhar não se quer bem".
Bento cego contra-ataca: "Sem olhar também se ama a mulher que estima a gente os olhos são traidores quando o coração
não sente". A porfia segue braba e, por fim, Chico Folião se confessa derrotado.
Cabelão comprido, moço bonito logo enfrenta outro cantador famoso.
A peleja termina com os dois chorando com os versos de Bento:
"Não posso dizer se tal coisa é feia ou bonita porque me vejo no abismo da escuridão infinita. "
Antonina fica pequena para ele, Bento Cego se despede da mãe e sai pelo mundo afora vencendo desafios.
Sente fraqueza nos pulmões e vai para Lapa se curar. Lá enfrenta
o invicto Manoel Viola e diz o que pensa da mulher: "Tem amor tem distinção ralhaefala mas não deixa de escutar teu coração".
Manuel Viola alerta: "Pois então se é assim estás de todo perdido. Hás de ver teu coração cair bem logo vencido". Bento reflete "Bem vindo que seja ele/ pela graça da mulher/ antes ela nos vença/ do que a mão de Lúcifer". Vencer mais esta porfia.
Sente-se curado e segue seu caminho.
Fica em Santa Catarina, numa casinha dum fazendeiro seu fã. Encontra o amor: é Catarina, uma bela jovem órfã que trabalha na roça.
Ela cuida dele e tudo vai bem, mas Bento Cego quer mais: "Só quisera ter a dita de filha te enxergar que a vida eu não gomaria/ diante de teu olhar". Ela sorri para Bento, os dois se amam: ‘Não há dúvida que tens/ muita candura no amor/ mas eu quisera senhora/ ver-te sorrir com fulgor". Vivem felizes.
Um dia, ele acorda e não sente mais o doce cheiro do corpo de Catarina.
Sem aviso, ela foi embora.
Seu mundo fica mais escuro.
Sem poder suportar a solidão, Bento parte.
Talvez um dia, reencontre Catarina, o amor.
Um dia aparece em Sorocaba, amargo, cansado e com os pulmões doentes.
Mesmo fraco, aceita enfrentar ao mesmo tempo 3 cantadores. A porfia segue por 3 dias e 3 noites.
Caindo de cansaço, Bento Cego ainda canta: "Hei de morrer cantando/ Cantando me hei de enterrar/ Cantando irei para o céu/ Cantando conta hei de dar". Diz-se que, nesse momento, levantou os olhos ao fundo da sala, onde havia uma imagem da Virgem.
Diz-se que, nesse momento, viu a imagem da Virgem.
Ninguém sabe.
Nesse momento, ele caiu morto, deitando sangue pela boca.
Ninguém sabe, mas acho que, nesse momento, ele não viu a imagem da Virgem, viu novamente o amor, viu Catarina.

Valêncio Xavier é escritor e historiador.

Histórias do Paraná - Mão

Histórias do Paraná - Mão

Mão
Nilson Monteiro

Pousou no balcão, ao meu lado.
Grossa.
Dava pra ver de onde teria vindo aquela borboleta vincada, cansada talvez?
Que terras eram aquelas que abrigavam seus vincos, quase cor de vinho, suas unhas, as erosões talhadas em sua carne?
A mão não me perguntava, nem me explicava nada.
Pousou indiferente.
Com calos aqui e ali, sugerindo vidas.
Com riachos roxos em suas linhas.
Simplesmente pousou. E ficou.
Tamborilou os dedos, pra lá e pra cá no balcão, como a desfrutar do espaço livre para sua existência.
Mas não avançou e nem recuou.
Parou.
Um cheiro geográfico, paranaense, quem sabe?
Parada, a borboleta de cinco pétalas, criava mais emoção, ficção.
Instigava.
Inspirava.
Lavrar, colher, levar o milho para o paiol, derriçar o café, cuidar dos cavalos, afagar suas crinas, puxar água do poço, rachar madeira, quem sabe o labor daquela borboleta e seus dedos de unhas enlutadas? Ou quem pode adiantar os destinos que aquela mão ainda planeja? Talvez remexer o chão para dele brotar o verde? Talvez enterrar uma ex-vida? Nada dizia.
Nem questionava.
Parada.
Será que não seria a executora de belas sinfonias, tragando poesia no balcão antes de causar emoção por teatros e óperas? Não, não era uma mão fina, bem tratada, de unhas caprichadas nos melhores salões e encharcada de bálsamos.
Mas, quem disse que só essas conseguem executar as obras dos imortais ou, melhor, compor novas delícias sonoras? Onde está o sábio que prova que a poesia só pode ser destilada de mão sem calos, cheirosas e intelectuais?
Sim ou não.
Nada parecia ferir a paciência e a sensibilidade da personagem.
Vez ou outra levantava breve vôo, mas logo depois espalmava-se sobre o balcão, indiferente às minhas elucubrações: não poderia ser o instrumento de um preciso bisturi, operando as dores de homens, mulheres e crianças? Ou célere instrumento de um esportista, acostumado à fama? Ou até mesmo
o funil de informações, passadas a limpo na neurose das teclas de uma máquina de Redação?
Havia pêlos sobre ela, sim.
Poderia ser de um tosquiador de ovelhas, nobre e triste operário que descobre aqui para cobrir ali.
Ou mesmo de um gênio da argamassa, mestre nas quantidades de cimento e areia e tijolos e água para erguer casas, prédios, pontes etc.
Sim, poderia, por que não?, ser de um preocupado bancário, às voltas o dia todo com milhões e milhões de cruzeiros e seus salários no final do mês...
Desta vez o gesto foi mais largo, demorado.
Ela traçou parábolas no ar, abandonando a frieza do balcão.
Subiu, desceu.
Levantou, caiu, garça louca, esparramou-se no chão seco do balcão.
Garça não, borboleta.
Borboleta é mais infantil, agrada mais às crianças, é mais ágü, brinca com os olhos e lembra a existência das matas, dos matos, dos quintais, do barro grudento, dos rios...
Borboleta.
Assim como pousou, alçou vôo. O balcão ficou de novo frio, gelado, impessoal.

Nilson Monteiro é jornalista e poeta.

Histórias do Paraná - Acredite se quiser

Histórias do Paraná - Acredite se quiser

Acredite se quiser
Gerson Luiz Borges de Macedo

Já vai longe o tempo em que uma corrida de cavalos era um divertimento restrito a meia-dúzia de expectadores, sendo que dentre eles alguns especiais, os donos dos animais, geralmente os "Coronéis" da época. O local era quase sempre uma raia improvisada em qualquer canto desse nosso país, e os cavalinhos nem de longe lembrariam os puro-sangues que galopam profissionalmente hoje em dia, pelos hipódromos de todo o mundo.
O povo paranaense pode se orgulhar do turfe de nosso Estado, considerado entre os quatro melhores do Brasil, ao lado de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, Possuímos um centro de criação dos melhores e um belíssimo hipódromo totalmente
informatizado, que realiza corridas todos os finais de semana, se constituindo numa ótima opção de lazer ao povo curitibano, além, é claro, o fato de que ninguém resiste à tentação de fazer uma "fézinha" e torcer pelo seu preferido.
As corridas do Hipódromo do Tarumã em Curitiba ganharam o Brasil e uma vez por mês são transmitidas via satélite para todo o país, onde agências de apostas fazem
o elo de ligação entre o sonho da fortuna e as patas dos animais, que correm sem saber que movimentam um mundo de emoções, muito trabalho, tristeza e alegrias.
Apesar de toda modernidade e tecnologia que invadiu o turfe, o inacreditável também acontece nas pistas de corridas. A história que vamos relatar aconteceu no Hipódromo de Uvaranas, cidade de Ponta Grossa, hoje infelizmente desativada, há mais ou menos 12 anos atrás.
Devo esclarecer que não há registro fotográfico ou vídeo do fato ocorrido.
Garanto, porém, a veracidade da história, e testemunhas com certeza aparecerão às dezenas após a publicação destas linhas.
Por mais leigo que seja o leitor em matéria de corridas de cavalos, todos certamente sabem o que é um cavalo e o que é um jóquei, e que em toda corrida cada animal tem o seu respectivo e único condutor.
Pois é, em Ponta Grossa aconteceu a exceção.
Em um determinado páreo, um cavalo iniciou uma corrida com um jóquei e terminou-a com outro.
Sucedeu que no início da reta final houve uma "rodada", que na gíria turfística significa um acidente ou queda, envolvendo dois cavalos e respectivos jóqueis.
Um dos jóqueis se estatelou no chão, mas o segundo jóquei foi cair exatamente em cima do cavalo que não o seu, e o mesmo continuou a correr. O assustado ginete na tentativa de evitar mal maior para si próprio, agarrou-se como pôde no também assustado animal e os dois continuaram a correr, sem saber que estavam protagonizando uma cena digna da "Sessão Pastelão" e um fato inédito no mundo do turfe.
Para cena ficar perfeita, só faltou que os dois tivessem ganho a corrida.

Gerson Luiz Borges de Macedo, cronista de turfe e narrador do Jockey Club do Paraná.

domingo, 22 de junho de 2014

Histórias do Paraná - Zé da vida e do mundo

Histórias do Paraná - Zé da vida e do mundo

Zé da vida e do mundo
Roberto José da Silva

Seria mais um Zé da vida não fosse ele o Zé Eugênio, que tem um Souza no nome (mas pouca gente sabe) e, claro, veio de "lá" pendurado num caminhão pau de arara, para mostrar a nós, sulistas, com quantos paus se faz uma alma do tamanho do mundo e um corpo de ferro.
O Zé hoje anda meio sossegado.
Pode ser visto no portão do seu sobrado de madeira encravado quase na esquina da Rua Dr. Roberto Barrozo com a Mateus Leme.
A careca brilha, o rosto não lem uma só ruguinha e ninguém diz que ele já passou dos sessenta e, se bobear logo vai ser bisavô.
Sofreu um derrame há pouco lempo. O derrame lascou-se.
Quem mandou atacar esse pernambucano de Garanhuns criado a leite de cabra, farinha, rapadura, manga rosa, cuscuz e carne seca? Bengala na mão, o Zé que já foi lavrador, esticador, boxeador e saiu do anonimato como fotógrafo com seu olho e sua sensibilidade de gente, gosta de dar uas caminhadas até o Palácio Iguaçu c no trajeto vai curtindo a natureza das plantas e dos homens.
Ele pode.
Ele deve. A dona morte com certeza está convencida disto.
Antes do derrame ele já tinha driblado com a maestria de sua vontade de viver um acidente feio de avião. A asa dura teimou em despencar perto da cabeceira da pista do aeroporto do Bacacheri. O Zé tinha ido fazer umas fotos aéreas no litoral.
Salvou as imagens e a pele, apesar de passar um bom tempo de molho aos cuidados da maravilhosa Dodó, sua mulher, amiga, companheira e mãe não só dos seus quatro filhos (Jorge, Fernando, Ana Paula e Denise), mas também de todos os amigos que freqüentam a sua casa.
Já ouvi gente dizer que o Zé não existe.
Existe sim, é meu compadre, foi meu companheiro de trabalho durante anos na revista Placar e amigo para tudo quanto é tipo de hora.
Tempos atrás eu precisei dele, ou melhor, dos conselhos deste homem que um dia me salvou de um aperto no campo do Coritiba, quando todo o plantei coxa me cercou raivoso por causa de chamada de capa infeliz de um editor maluco em São Paulo.
Lembro que o ex-ponta esquerda Santos ameaçou me dar um tapa e enfiou o rabo entre as pernas quando o Zé, que até então estava calado, interferiu preciso. "Não vem dar uma de pernambucano não porque eu também sou de lá".
É, o Zé Eugênio agora me salvou de novo com as recomendações de alguém que vive neste mundo maluco com os olhos e a mente abertos.
Por isso esta pequena homenagem.
Todos que conhecem este Zé sabem que ele merece muito mais.

Roberto José da Silva, jornalista

Histórias do Paraná - Homenagens perigosas

Histórias do Paraná - Homenagens perigosas

Homenagens perigosas
Leonardo Henrique dos Santos

É difícil apontar, na história recente do Paraná, algum governante que tenha resistido à tentação de ter,
ainda em vida, o seu próprio nome "eternizado" em alguma obra. E se incluirmos os que resistem à autoglorificação, mas capitularam ante as pressões domésticas e permitiram que suas respectivas mulheres virassem nome de creche, ou coisa parecida, aí salva-se bem pouca gente.
Mesmo se considerarmos como "recente" o período que vem desde os tempos de Moysés Lupion.
A lei proíbe que o governante coloque o seu próprio nome em obras públicas, o que seria realmente demais, mas não diz nada quanto a ser homenageado por instituições não governamentais, ainda que quase sempre alimentadas por recursos públicos.
A prática de se dar o nome de pessoas ainda vivas a obras costuma funcionar como autêntico "abre-te, Sézamo" diante dos cofres públicos.
Mas também oferece sérios riscos de criar situações constrangedoras para as duas partes — aduladores e adulados.
Quando decidiram construir o seu parque de exposição em Londrina, por exemplo, os dirigentes da antiga Sociedade Rural do Norte do Paraná, de olho na ajuda oficial, não vacilaram em dar ao nome do governador da época — Ney Braga, que mereceu até um busto em bronze na entrada.
Alguns anos depois, necessitando de mais ajuda para ampliar o parque, depararam com um problema: o governador já era Paulo Pimentel, que no mínimo iria torcer o nariz à idéia de dar qualquer ajuda a uma obra que glorificava seu antecessor, com quem mantinha as piores das relações. A solução que encontraram foi batizar de "Governador Paulo Pimentel" a nova ala do mesmo parque, destinada a exposição industrial.
A denominação acessória acabou no esquecimento.
Onde também caiu a denominação do "campus" da Universidade Estadual de Londrina, que foi "Governador Paulo Pimentel" enquanto ele esteve no poder, mas deixou de ser assim que seu eterno inimigo Ney Braga chegou ao Ministério da Educação e seus seguidores, na UEL, discretamente "passaram uma borracha" sobre a homenagem.
O episódio mais patético, no entanto, ocorreu em Maringá. Orgulhosamente, a cidade ia inaugurar o seu parque de exposições sem bajular nenhuma autoridade de plantão - o local iria se chamar "Parque dos Pioneiros". Só que, de repente, o deputado maringaense Haroldo Leon Peres foi escolhido pelo general Médici para governar o Paraná. A justa homenagem aos pioneiros foi imediatamente esquecida e o parque rebatizado com
o nome do maringaense que havia chegado ao governo estadual, ainda que por vias transversas — havia, nos tempos do regime militar, um risível simulacro de "eleição indireta" para referendar o nome ungido pelo ditador.
Sete meses depois, Leon Peres renunciava ao cargo para não ser cassado por corrupção, num dos maiores escândalos da nossa história política. E os maringaenses se viram obrigados a escolher um terceiro nome para o parque, que virou "Presidente Costa e Silva". Alguém já falecido, para se evitar acidentes.

Leonardo Henrique do Santos, jornalista

Histórias do Paraná - Maiôs de lã

Histórias do Paraná - Maiôs de lã

Maiôs de lã
Rosi Thá Luiz

Lá pelos idos de 1941, as praias de Matinhos, Caiobá e Guaratuba eram freqüentadas pelos banhistas somente no inverno. Não que se tivesse uma especial predileção pelo frio, mas por uma profilática razão.
Acontece que o combate à malária não era realizado, e todos temiam ser picados pelo mosquito transmissor que, ao inocular seus micróbios, se posta de maneira graciosa sobre a pele dos iuautos, realizando passos mágicos de ballet, o que o diferencia dos mosquitos comuns.
Alguns dias mais tarde, uma febre intermitente e renitente se estabelecia e o desventurado, tremendo como São Guido, deveria se submeter a tratamento a base de quinino, que curava a doença, mas estraçalhava com o fígado da vítima.
Havia poucas casas, a luz era de lampião ou petromaques, e somente algumas vendas podiam suprir as necessidades da população móvel.
Em compensação, peixes, camarões e mariscos abundavam.
Os banhos de mar eram engraçadíssimos.
Devido ao frio, mulheres e homens se dirigiam até a praia, bem cedo, vestidos com roupões coloridos.
Os maiôs eram de lã, tecido que esticava após uma ou duas imersões no mar, tomando-se enormes, ficando duas vezes maiores que a silhueta que os envergava.
Era um horror.
Nos pés, ostentavam-se tamancos de sola de madeira, que evitavam ferimentos ao se caminhar pelas ruas revestidas do berbigão dos morros. A cabeça era revestida por toucas de borracha.
Toda a parafernália era deixada próxima às últimas ondas que beijavam a areia. O mar, em geral, apresentava-se calmo, com ondas que rebentavam silenciosamente.
Os banhos eram deliciosos e reconfortantes.
As caminhadas diárias eram obrigatórias.
Formavam-se grupos que iam aos Morros do Farol, do Boi, da Cruz, à Praia dos Amores, das Conchas, etc.
Os rapazes auxiliavam as moças nos trechos mais difíceis de serem transpostos.
Nos dias de lua cheia, todos se dirigiam às pedras para vê-la surgir como que emergindo do mar e derramando luz prateada na vastidão do oceano.
Nas outras, noites, realizavam-se serenatas sob acordes de violão.
A viagem até o litoral era difícil e longa.
Inicialmente, devia-se vencer o trecho pela Graciosa, até o alto da Serra do Mar.
As curvas, uma seguida às outras, deixavam muitos estômagos mareados. A cabeça rodopiava como pião solto da fieira.
Apesar do mal-estar físico, os rostos alegres e empoeirados amainavam a situação.
A expectativa maior era a chegada ao Balneário, hoje Praia de Leste.
Sem estrada, o acesso às praias era realizado pela areia, próximo ao mar.
Se a maré estivesse cheia, o recurso era esperar a vazante ou pernoitar no hotel lá existente.
Telefone não havia, para informar se a passagem estava livre, tinha-se que aventurar.
Todos temiam o percurso, pois os rios que deságuam no mar eram, às vezes, traiçoeiros.
Muitas carcaças de carros e ônibus foram tragadas, testemunho de que o trecho exigia a máxima atenção.
Para chegar a Guaratuba era necessário, ainda, contratar os serviços de canoeiros, e atravessar toda a bagagem em canoas movidas a remo.
A boa vontade, a beleza daquelas paragens, a tranqüilidade encontrada, o contato íntimo com a vegetação, com o mar,
o sol e o ar puro, superavam toda e qualquer dificuldade que se interpusesse entre a cidade e o litoral, entre a terra e o mar, entre o labor e o lazer.

Rosi Thá Luiz de Curitiba.

Histórias do Paraná - O dono da roda

Histórias do Paraná - O dono da roda

O dono da roda
Maria Elvira Secco

Na década de 40, as famílias italianas deixavam as grandes fazendas de café de São Paulo para enfrentar as matas paranaenses.
Depois da imigração, essas famílias, com filhos brasileiros, trocavam o aconchego das casas e colônias paulistas pela sonhada prosperidade.
Vinham carregadas de esperança, de força de trabalho suficiente para abrir uma picada na mata - às vezes no meio da picada, construir a casa na terra recém adquirida.
Nessa esperança embarcou Dona Maria Secco, viúva aos 29 anos e sete filhos, quatro homens e três mulheres.
Colocou todo mundo num caminhão com a mudança escassa, onde três peças eram fundamentais: a máquina de costura "Elgin", o guarda-roupa de duas portas com espelho de cristal e a fotografia colorida à mão, emoldurada, ultima lembrança do marido morto.
No caminhão, mais pesado que a mudança, era o coração da Ziza, corroído por uma saudade de amor aos 16 anos.
Paulista de São Joaquim da Barra, o namorado não quis acompanhar a família na nova aventura.
Três dias de viagem, a emoção da chegada, a primeira parede da casa de madeira, as queimadas, nada foi suficiente para distrair o coração da
Ziza.
Chorou durante um mês inteirinho até não agüentar mais, abraçou a mãe e voltou para São Paulo.
Vinte anos depois, o irmão caçula acomodou, como pôde, a mãe, a mulher e os três filhos num jeep "Williams", 1960, branco, que no asfalto podia chegar até 90 quilômetros por hora.
Em dois dias chegou a São Joaquim da Barra, localizou a casa da Ziza num bairro pobre, com seis filhos e o marido alcoólatra.
Quando a mãe bateu na porta, estava meio escuro e Ziza não reconheceu a mulher de cabelos brancos, ainda anelados.
Mais tarde, respirando fundo depois das lágrimas do reencontro, sentou-se ao lado da mãe, porque não tinha mais coragem nem idade para o colo materno.
Olhou para o irmão caçula, homem feito, para a cunhada que nem conhecia, com a permanente nova, deixando a cabeça que era só rolinhos finos.
Parecia bem de vida.
Do irmão, duas lembranças. A primeira, ele mexendo sem parar na roda da máquina de costura e dizendo: "Sou o dono da roda, sou o dono da roda". Era mesmo, por que tinha promessa da mãe que, se um dia, a máquina quebrasse, a roda seria dele.
Ziza nem sabia que a "Elgin" permanecia na sala de jantar, intacta, quase nova, cobiçada pelas netas para dar um toque de nostalgia na decoração do apartamento. E a segunda lembrança era também do menino, deslumbrado com o primeiro sorvete, durante a viagem para o Paraná. Devia ter uns cinco ou seis anos e, na parada em Lençóis Paulistas, a mãe lhe deu o picolé de côco queimado.
Fez mal para o estômago, porque ele engoliu o sorvete como um desesperado depois da sopa quente.
Ziza olhou para os sobrinhos, imaginando que deviam ter sorvete à vontade. E pensou que a prosperidade vinha daquelas matas do Paraná. Com o sol vermelho, depois das queimadas, eram bonitas.
Talvez por falta de assuntos, fruto da longa saudade, perguntou:
- "Mãe, tem muita mata por lá ainda?"
- Não filha, aquilo tudo já é quase uma cidade só. Cambé está encontrando Londrina. A mata agora virou prédio, asfalto, automóvel.
Precisa ver que beleza".
- "Então, vocês trabalharam muito lá, né mãe?"
- "É..."
Maria Elvira Secco, professora em Londrina

Histórias do Paraná - Fábulas indígenas

Histórias do Paraná - Fábulas indígenas

Fábulas indígenas
Luiz Augusto Pierin

"Macaco velho não mete a mão em cumbuca".
Bem velho é esse ditado, nossos avós já o recitavam.
Seu significado, também, não é mistério para ninguém. O que a maioria sequer desconfia é que esse velho ditado foi cunhado em tempos imemoriais pelos índios tupis brasileiros.
Eles pronunciavam algo como: "Kai tuimbaé i pó kuiambuka pupé ndoimondeb'.
A "literatura", por assim dizer, de nossos indígenas era vasta, mesmo com sua característica de iransmissão oral.
Isso incluía os primeiros ocupantes do território que hoje vem a ser o Paraná, principalmente os guaranis.
Algumas de suas lendas - como a da criação cias Cataratas do Iguaçu, por exemplo — são fartamente conhecidas.
Mas suas criações abrangiam, ainda, muitas histórias lipo fábulas, provérbios e trovas -algumas de grande apelo poético.
Diversos antropólogos, lingüistas e outros estudiosos, principalmente nos séculos XVIII e XIX recolheram e compilaram parte da produção literária ou do imaginário dos nossos índios, entre os paranaenses.
Faris Antonio S. Michaele, no seu trabalho "Presença do índio no Paraná" (in História do
Paraná — Coleção Grafipar), destaca, por exemplo, belas fábulas como a da onça e a raposa.
Há muito tempo que a onça queria deitar as patas — e a boca — na ladina da raposa.
Esta, além de ágil, era muito esperta, e sempre escapava da onça.
Até que a onça bolou um plano que julgava infalível para pegar a raposa: fingiu-se de morta. A notícia da morte da rainha da floresta correu a mata, todos os animais apareciam para ver e velar a onça morta.
A raposa perguntou então aos outros animais:
- "A onça já arrotou três vezes?"
Ante a surpresa dos demais animais, a raposa tratou de esclarecer que toda onça, quando morre arrota três vezes.
Ao ouvir a explicação, a onça cuidou de convencer a bicharada toda de que, realmente, estava morta, e arrotou forte três vezes. A raposa, mais que depressa, deu no pé, não sem antes dar uma gostosa gargalhada: "Onde já se viu um defunto arrotar?"
Já a história indígena, da raposa e do jaboti lembra em muito a nossa fábula do coelho e da tartaruga.
Nas duas histórias os bichos apostam uma corrida. Só que, no caso da fábula indígena, o jaboti é muito mais esperto.
Na história indígena, o vencedor da corrida ganha como prêmio o direito de casar com a filha do gavião.
Como é muito devagar, o jabuti pegou sua parentada toda -centenas de outros jabotis iguais a ele - e colocou os bichos em intervalos regulares ao longo do trajeto. E dada a largada e lá se vão a raposa e o jabuti. A raposa dispara na frente, é claro, e volta e meia olha para trás, para se certificar que o jaboti esta longe.
Mas o que vê a raposa? Um jaboti quase nos seus calcanhares. A raposa apressa a corrida, olha para trás e o jaboti continua no seu encalço.
Até que a raposa não agüenta mais, desfalece de cansaço, e o jaboti ganha a corrida.
Para completar, uma trovinha em guarani:
"Ixe, man, guirá mirim!
Xá rekó, man, ce pepó.
Xa bebê ne rakaquera Xapuana ne rekô.
A tradução nos revela uma bela e sutil poesia que nada deixa a dever aos mais sensiveis hai-kais.
A tradução diz: "Se eu fora um passarinho, oh, quem me dera!
Eu teria minhas asas, voaria no teu encalço, e me ergueria ao pé de ti."

Luiz Augusto Pierin, contador aposentado e pesquisador em Foz do Iguaçu

sábado, 21 de junho de 2014

Histórias do Paraná - Vidas demais

Histórias do Paraná - Vidas demais

Vidas demais
Almir Aires Arruda

"Oh! Quatiguá
Oh! Quatiguá
És o celeiro deste Paraná..."
Com este hino, cantado por todos os escolares e a população, homenageávamos o Distrito de Quatiguá
quando de sua emancipação político-administrativa da comarca de Joaquim Távora e a sua conseqüente instalação como Município, em 26 de outubro de
1947.
Quanto ufanismo, vejo agora. O "celeiro deste Paraná" era na ocasião o menor município do Estado, com apenas 4.500 alqueires de área, o equivalente a poucos 108 quilômetros quadrados.
Na verdade, melhor lhe cabia o apodo de "Cidade Botão", como também era chamada, pois Quatiguá tinha casas de um só lado de sua rua central, a outra margem pertencia à Estrada de Ferro onde corria o trem.
Assumiu provisoriamente o cargo de prefeito municipal, nomeado por Moysés Lupion, governador do Estado, o Sr. Orlando Athaíde Bittencourt, com mandato até dezembro de 1947, quando seriam realizadas eleições para a Prefeitura e a Câmara Municipal.
Eleições ordeiras disputadas por Ernesto Zanini, do PSD, e Antônio Rodrigues Filho, da UDN com apoio
do PTB e PSP. Venceu o primeiro, por uma diferença mínima de votos, mesmo porque o colégio eleitoral todo não atendia a 500 eleitores. O PSD também fez maioria para a Câmara Municipal, elegendo cinco vereadores, entre eles o autor destas mal-traçadas.
Era comum após o término das sessões da Câmara, que realizávamos à noite, na parte superior do prédio onde funcionava a Prefeitura Municipal, nos reunirmos no "Bar do Nogueira" a fim de comentarmos extra-sessão, os assuntos concernentes à ordem dos trabalhos.
Os mais idosos e os que moravam distante da sede do município se retiravam, permanecendo invariavelmente a bancada do PSD e o vereador Nestor Cassemiro Teixeira, da UDN, amigo de todos.
Uma das sessões, em abril de
1948, quando da elaboração do Regimento Interno da Câmara Municipal, se prolongou até altas horas da noite pelo cuidado que se estava tendo, a fim de que não colidisse com a Lei Orgânica dos Municípios que estava em discussão na Assembléia Legislativa do Estado.
Ao final, saímos para encostar o estômago no Bar do Nogueira. Éramos seis vereadores.
A conversa fluía descontraída, quando a porta do bar que estava semicerrada foi aberta com estrépito, uma figura com quase 2 metros de altura adentra a sala e, num vozeirão, brada: - "Senhores vereadores, vim cobrar a promessa da campanha!" Olhamos atônitos.
Aquela figura era o querido amigo Francisco Ormeseze, carinhosamente chamado por toda a população quatiguaense de "Florindo", um homenzarrão de 1,95 de altura e 100 quilos de peso que voltou a falar:
- "Os Senhores já estão há mais de quatro meses em exercício na Câmara Municipal e até hoje não cumpriram a promessa feita em campanha".
Perguntamos ao mesmo tempo: - "Que promessa, Florindo?" Ele, do alto de seu 1,95 de altura respondeu: - "Vocês não prometeram acabar com as vidas da rua João Pessoa?" (A Rua João Pessoa era a artéria principal da "Cidade Botão"). Todos continuaram não entendendo nada.
— "Que vidas, Florindo?"
Gargalhando, o Florindo respondeu: - "Não se diz que a vida é um buraco? Pois a rua João Pessoa esta cheia deles!"
A ironia surtiu o efeito desejado.
Providências foram tomadas e a rua recebeu uma generosa camada de saibro.

Almir Aires Arruda, professor e empresário, ex-vereador e fundador do município de Quatiguá