segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Histórias do Paraná - O escrivão analfabeto

Histórias do Paraná - O escrivão analfabeto

O escrivão analfabeto
Rui Pinto

Pelas Ordenações Filipinas os escrivães deveriam ser homens de bom juízo e entendimento, que soubessem escrever e notar.
E essas habilidades com as letras e as leis foram especialmente estimuladas no Brasil dos primeiros tempos coloniais, porque aqui os escrivães serviam como assessores importantes dos juizes, visto que esses, como os chamados ordinários, eram na sua maioria pessoas iletradas. E foi assim por muito tempo, até 1642, durante o reinado de D. João IV, quando se proibiu a eleição de juizes ordinários analfabetos, escolhidos anualmente pelo povo e pelas Câmaras.
Porém, o episódio que se pretende contar se refere a um tempo muito mais recente e tem por cenário nossa Curitiba de algumas décadas atrás, já afamada por suas luzes universitárias.
Na nossa história, entretanto, é o próprio escrivão que é analfabeto, ou quase isso, apesar de titular, de há muitos anos, de uma das serventias criminais da capital.
Embora jejuno das letras, o serventuário era homem benquisto e prestigiado pelos próprios juizes da vara, que faziam vista grossa de seu despreparo.
Para não se expor, o escrivão nunca oficiava diretamente nos feitos, nem participava das audiências.
Tudo era feito pelo escrevente e os atos posteriores sacramentados de alguma forma pelo escrivão.
Conta-se que sua dificuldade era tanta que, embora fosse Gonçalves de sobrenome, escrevia Gonsalves (com s), porque achava difícil usar o c cedilha.
Acontece que, pelas tantas, assumiu um juiz sisudo e muito formal quanto aos atos da Justiça.
Quando depressa lhe contaram que o escrivão era analfabeto, estremeceu de horror:
- Onde já se viu um escrivão analfabeto, reagiu. E nesses tempos! Pois veremos...
E, assim, logo à primeira audiência convocou o escrivão para lavrar seus termos, pessoalmente.
- Meretíssimo, o senhor não precisa de mim, redargüiu este.
Tem o escrevente que faz tudo. E moço de muita competência. E tem sido sempre assim...
- Qual nada, impôs o severo magistrado. O senhor é que é o escrivão e vai fazer a audiência!
Pois assim foi.
Resignado, o serventuário assumiu calado o seu ofício e, à hora, ajeitou-se para lavrar o livro oficial.
Acomodadas as partes, determinou o juiz, à cabeceira da mesa:
- Senhor escrivão, faça a assentada da primeira testemunha!
E aí então se deu o desastre.
Forçando a mão, o pobre escrivão tentava garatujar a palavra assenta, que, com extrema dificuldade, saiu, afinal, asentada, esquecendo o outro s.
- Vejo que o senhor não sabe escrever, senhor escrivão, reagiu em voz alta o juiz.
De modo algum posso tolerar um escrivão analfabeto em minha vara. O senhor está suspenso, até que o Tribunal resolva esse impasse!
E foi o que aconteceu, só que, por gozar de grande estima e prestígio, e ser aparentado de um dos potentados da política local, as coisas acabaram se acomodando e, vencida a suspensão, o escrivão voltou ao seu ofício e a se servir dos préstimos de seu escrevente.
Do juiz, a crônica não diz o que se sucedeu.
Ou foi sucedido?...

Rui Pinto, Procurador de Justiça


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