terça-feira, 4 de novembro de 2014

Histórias do Paraná - A autoridade da freira

Histórias do Paraná - A autoridade da freira

A autoridade da freira
Lauro Grein Filho

Muito se fala e critica acerca do ensino médico no Brasil, aquém dos padrões que se considerariam, até certo ponto, dignos e razoáveis.
Os reparos vêm desde a proliferação exagerada das Escolas, envolvendo currículos e cargas horárias, até a carência de professores, incapazes de responder à explosão incontrolável do alunado.
Em que pese, entretanto, tudo o que há de falho e errado, tudo o que existe para corrigir e melhorar, o fato é que muito evoluímos nestes últimos anos, proporcionando aos acadêmicos de hoje muito mais do que tínhamos no meu tempo de bancos universitários.
O hospital da Cruz Vermelha, que dirijo, presta uma ponderável contribuição pedagógica, através de residências, estágios, programações, atividades do Centro de Estudos, toda uma estrutura de dedicações, empenhos e esforços em favor da melhor formação profissional dos doutores de amanhã.
Antigamente não acontecia assim.
Até o terceiro ano, o ensino era totalmente teórico, não saindo das salas e dos anfiteatros da Praça Santos Andrade.
Ao quarto, passava-se para a Santa Casa, único campo para as aulas práticas e contato com os enfermos.
Muitas dessas aulas, no entanto, em pouco ou nada distinguiam-se das demais, o doente aparecendo como mera figura decorativa sem qualquer participação no desenrolar das explanações.
Nas salas de operação, após a troca do paletó pelo avental, soltos ou empoleirados num estrado, não alcançávamos mais que as mãos enluvadas do cirurgião no manejo ágil dos bisturis, pinças, etc.
A alternativa era ligar-se a um professor e, na conquista de suas graças, ser admitido no serviço que chefiava.
Por tais modos, é que na altura do sexto ano, na condição de Interno de Clínica Médica, me vi titular de uma ala da Enfermaria Santo Antônio, meia dúzia de leitos masculinos, sob minha responsabilidade, competência e direção.
No primeiro dia, revisei cuidadosamente todos eles, receitando para um, pedindo exames para três, e dando alta para dois.
Na manhã seguinte, animado de zelos e deszelos, fui ter cedo aos meus pacientes a conferir as prescrições determinadas, esperando novos enfermos em decorrência das vagas que provocara.
Verifiquei que os exames não haviam sido encaminhados, nem os medicamentos ministrados, enquanto os doentes com alta lá permaneciam firmes e intocáveis.
Um tanto intrigado, aguardei esperançosamente mais um dia, a observar se minhas ordens afinal seriam cumpridas.
Como não fossem, movido das melhores intenções e tendo em vista o evidente descaso que se prolongava, decidi ir até a irmã Diretora afim das necessárias providências.
A religiosa recebeu-me com extrema agressividade, dizendo categoricamente que não era médico e portanto incapaz, impedido e proibido de receitar e pedir exames.
Acrescentou que tampouco podia escrever nas papeletas e muito menos "mandar embora" doentes que lhe ajudavam a dobrar gazes e enrolar ataduras, além de fazer a limpeza na Enfermaria.
Que me retirasse, que não amolasse e que desaparecesse.
Ao finalizar, quando já me retirava, vencido e abatido, ainda ouvi me chamar de ousado, atrevido e irresponsável.
Nunca mais pisei na Enfermaria Santo Antônio, sequer nas imediações.
Mas deparava amiúde com os pacientes aos quais havia dado alta, serenos e tranqüilos pelos pátios, na faina monótona das gazes e ataduras, agrado imprescindível à irmã, garantia do teto, da vida, do pão.

Lauro Grein Filho, médico e membro do Centro de Letras do Paraná


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