Histórias do Paraná - Tudo e mais um pouco
Tudo e mais um pouco
Francisco Brito de Lacerda
Ninguém podia com a viúva do Guiomar.
Ela era o homem da casa. Perdera cedo o marido, desastrado no disparo de uma carroça.
Nem bem clareava o dia, tinha começo sua lida no sítio, de onde tirava o sustento da família, fazendo sobrar o dízimo destinado a Santo Antônio.
A viúva não queria saber de empregados.
Durante a roçada e colheita, empreitava a mão-de-obra.
Mantinha um rapazinho chamado Joel (órfão, analfabeto, miserável) que trabalhava a troco de casa, comida e roupa velha.
Glutão, capaz de comer viradinho até dizer chega, o fraco do Joel era mulher. Só de olhar a filha mocinha da viúva, meio vesgo ficava.
Cautelosa, Guiomar às vezes lhe adiantava uns cobres, a fim de que pudesse desaguaxar seus desejos na cidade.
Joel cuidava da vaca salina, tangendo-a do potreiro à estrebaria, ida e volta; dava-lhe sal, alfafa, sobras de massa crua.
Aprendendo a usar as mãos ao mesmo tempo, uma em cada teta, o rapazinho fazia esguichar leite no balde, em pouco tempo quase cheio.
Ao acordar, Guiomar estranhou a ausência de Joel na cozinha.
Fogo apagado, balde vazio.
Procurado no paiol, onde dormia, ele não foi achado.
Da vaquinha salina, nem sombra.
Já na cidade, Guiomar deu com a vaquinha amarrada a um fra-de-de-pedra, defronte a casa do negociante Dario.
"Sabe o senhor que esta vaca é minha?", reclamou. Morto de medo, Dario logo lhe devolveu a tetuda.
Depois de vender a vaca, o rapazinho comprou aquilo que mais queria: um sapato novo, ceroula, camisa, gravata, um corte de brim, botões.
Com o corte no balcão, esperando o troco, Joel deu com o cabo Xisto atravessando a rua. "Precisamos conversar" disse o cabo.
Atrapalhado, mostrando a palma da mão, Joel pediu ao cabo que aguardasse um pouco; fez que ia ver alguma coisa na esquina. E abriu o pé. O ferreiro teve pena dele. "Fugir é ruim, Joel, muito ruim. Só agrava." Recolhido à cadeia, ele logo recebeu a primeira visita.
Com um ar de riso nos grossos beiços, o cabo Xisto abriu a pesada porta de ferro da cela; sentou-se num banquinho, e deixou que Joel falasse.
"Fiz plano de roubar a vaquinha e vender na cidade.
Trabalhava pra não morrer de fome.
Queria dinheiro, um pouco que fosse.
"Bem novo, oito anos, aprendi a roubar com dona Eulália Góis, minha madrinha.
Ela mandava eu tirar galinha do quintal do velho Pedro, vizinho. O cachorro da casa me conhecia.
Quando quisessem descobrir, a galinha estava depena-da.
"Como foi o roubo de ontem? Já lhe conto.
Em lugar de levar a vaquinha pro potreiro, desviei o rumo dela; a bichinha entrou no mato.
Prendi ela num tronco de cambará. Quase noite, saindo dali, ouvi mugidos.
Me deu um dó!
Passei a noite acordado.
Ainda escuro, peguei a estrada, a vaquinha na frente, abrindo caminho. O negociante da esquina me pagou três notas verdes.
"Eu tinha feito promessa de seguir a procissão de sapato novo que nunca tive, de terno engomado, igual àqueles que os moços usam em dia de festa.
Quem sabe até uma namorada arranjar?"
Francisco Brito de Lacerda é advogado
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