sábado, 18 de junho de 2016

Histórias do Paraná - Escravos brancos

Histórias do Paraná - Escravos brancos

Escravos brancos
Marina Martins Gouveia

Durante muitos anos, uma larga faixa de densa floresta na fronteira oeste do Estado, entre os rios Paraná e Piquiri, foi palco de uma das mais vergonhosas páginas de nossa história.
Nessa região então desabitada de brasileiros, duas grandes empresas argentinas exploradoras de nossa erva-mate estenderam seus tentáculos e submeteram centenas de trabalhadores, nas duas primeiras décadas do século, a uma infamante escravatura branca.
Coelho Junior, sertanista, topógrafo e escritor curitibano, participou de uma expedição pioneira à região, em 1911, chefiada pelo Sertanista Edmundo Mercer, Num livro que editou anos depois, Coelho Junior descreve, indignado o que viu então.
As empresas argentinas Alica e Companhia Mate Laranjeira eram, de fato, as senhoras da área.
Sessenta quilômetros a jusante de Sete Quedas, último ponto navegável do Rio Paraná em território paranaense, vindo do Sul, cada uma das empresas mantinha seu porto privado — Porto Mendes e Porto Alica -, onde embarcavam suas produções de mate para Argentina e Uruguai.
Uma ferroviária particular de 60 km ligava os portos fluviais aos escritórios centrais e armazéns, próximos a Guaíra.
Também de Guaíra saía a estrada precária que levava à zona de produções da empresa Alica ou Artaza, mais de cem quilômetros mata adentro, num lugar chamado "Pensamiento". Para ali eram levados os escravos brancos.
Quase todos paraguaios, os trabalhadores transformados em escravos — os chamados "mensus" — eram aliciados em Posadas, cidade Argentina às margens do Rio Paraná, muito procurada pelos paraguaios desempregados. O método usado pelos aliciadores das companhias era infalível: falavam de um verdadeiro "eldorado" rio acima, ótimo salário, comissões por produção, alojamento e alimentação de graça... e muitas e belas mulheres.
Como argumento definitivo, faziam um gordo adiantamento em dinheiro. A armadilha estava armada.
Nessa mesma noite, o paraguaio era arrastado para uma noitada em casas de jogo e prostituição, das quais irremediavelmente, só saía depois de aliviado, literalmente, do último "peso". Sem dinheiro e com dívidas, ao paraguaio não restava outra alternativa que seguir com a companhia para as matas misteriosas do Paraná.
A viagem até Guaíra - em simpáticos vapores e ferrovia — até era agradável. A animação aumentava com o baile promovido num dos galpões da companhia, onde se alojavam as moças contratadas.
Era a última festa, ao final da qual o "mensu" tinha o direito — e obrigação — de escolher uma mulher para a sua companheira no erval.
Eram também paraguaias, muito jovens, quase crianças.
No dia seguinte, bem cedo, com a viagem até o erval, começava para o "mensu" a vida de escravo branco.
A rotina, dali para a frente, seria trabalhar todos os dias desde antes do nascer do sol até depois do poente.
Alimentação sempre a mesma: uma gororoba de milho cozido e "tererê", o chimarrão frio.
Para dormir, ranchos precários, frios e úmidos.
Dinheiro, nenhum — a dívida contrída em Posadas, em vez de diminuir, aumentava todo dia.
Mesmo no meio da selva, as companheiras dos paraguaios eram induzidas pelos capatazes da companhia a comprar vestidos de seda e perfumes franceses, fiado. E ainda havia o desconto do rancho, da alimentação, das ferramentas...
Fugir? Na direção leste, cem quilômetros de mata separavam o
erval do povoamento mais próximo, a nascente Campo Mourão.
Na outra direção, só existia a estrada da vinda, vigiada em toda sua extensão pelos guardas armados da companhia, os "perros" (cachorros), que não pensavam duas vezes antes de disparar nos que tentavam fugir. "Não são poucos os esqueletos humanos encontrados pelas cercanias", escreveu Coelho Junior.
Apesar das denúncias feitas pelos sertanistas na volta a Curitiba, em 1911, aquela situação desumana perdurou até 1923, quando os escravos brancos - dois mil na companhia Alica - foram libertados pelas forças revolucionárias do general Izidoro Dias Lopes.

Marina Martins Gouveia de Toledo, professora aposentada e pesquisadora.


Nenhum comentário:

Postar um comentário