sábado, 28 de maio de 2016

Histórias do Paraná - Guerra é guerra

Histórias do Paraná - Guerra é guerra

Guerra é guerra
Francisco Camargo

Em novembro de 1959, Curitiba foi sacudida pelo que ficou conhecido como a Guerra do Pente.
Muito já foi escrito sobre a explosão da massa que, na ocasião, elegeu como bode expiatório, os comerciantes de origem árabe da Praça Tiradentes, numa inconsciente prova de que o brasileiro cordial, de Sergio Buarque de Hollanda, só existiu mesmo no papel.
O governo tinha lançado o concurso "Seu Talão Vale um Milhão".
Simples: o cidadão exigia nota fiscal, que trocava por um tíquete para concorrer a prêmios.
Na compra de um pente, determinado comerciante se recusou a sacar o bloco.
Discussão, empurrões, xingamentos, sopapos.
O freguês era policial-militar, o que acendeu um estopim que levou o centro de Curitiba à explosão de fúria.
Quebra-quebra que só teve fim, no terceiro dia, quando da intervenção de tropas do Exército.
Isso todos, ou quase todos, sabem.
O que não sabem — e me proponho a tentar contar aqui - é que naquele primeiro dia de violência,
um pacato Segundo Sargento, à paisana, deixava o velho Serviço Regional de Obras, na Rua Presidente Faria, juntos ao Passeio Público, e tratava de alcançar o ônibus da Rua Marechal Floriano que, na época, fazia o percurso no sentido Tiradentes-Adauto Botelho,
o popular "hospício", no final da rua.
Final da Floriano e da cidade, já que tudo praticamente terminava ali, no hospício, quarteirão que, anos antes, tinha sido transformado em pista (terra batida) para uma sensacional e inédita prova automobilística -onde Barranco, do ferro-velho que levava seu nome, deu um show ao volante de suas carreta.
Levantando poeira e tirando finas dos amontoados de pneus que serviam de guard-rail.
Pois seguia o Sargento em passos acelerados.
Sobre pés que se chocam com os paralelepípedos e pedras negras do calçamento, 120 quilos distribuídos por um corpanzil de um homem de 1,80 metros.
No rosto, a expressão de quem estava com fome e não via a hora de chegar em casa.
Talvez o imenso bigode, de fios negros e espessos, dissimulasse um pouco o ricto labial que denunciava o estômago vazio.
Tratou de cortar a Tiradentes, para atingir o ponto de ônibus, mal olhando para os lados, preocupado com as coisas de sua vida e com a comida que o aguardava, fumegante, num canto do fogão a lenha - meio-dia, panela no fogo e barriga vazia.
Tanto que não notou a barulhenta turba, que a tudo atacava e destruía, numa fúria de paquidermes enlouquecidos ou a caoticamente metódica ânsia destrutiva de uma nuvem de gafanhotos.
Um grito salvador, partindo de um jipe do Exército que por ali passava, evitou que o homem de corpo avantajado e rosto a la Oriente Médio penetrasse como um inadvertido Moisés no mar de violência que se lhe abria à frente:
- Venha, Salada! Sai daí!
Ao mesmo tempo, era aberta a pequena porta de lona do jipe.
Possuído por uma súbita agilidade de felino, o sargento fugiu da cena do crime.
Sim, porque, com suas características, fatalmente seria tomado por sírio ou libanês e literalmente trucidado pelo povão ensandecido.
Naquele dia, qualquer cidadão que lembrasse um "batrício" seria buxado feito balão de festa junina.
Mesmo ele, um descendente de portugueses como, de fato, o era.
Mas, no caso, com a "agravante" de ter Saladim como prenome, que derivou para o apelido Salada.
Graças aos colegas do Serviço Regional de Obras, que iam para casa de viatura, o autor destas linhas, ficou livre de se tornar órfão bem antes do que veio a ocorrer quatro anos mais tarde.

Francisco Camargo, jornalista


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