Histórias do Paraná - Primeiro de Maio
Primeiro de Maio
Nilson Monteiro
Os olhos de Bernardo nadam, vermelhos, nas águas dos tucunarés, tilápias, bagres, lambaris assustados. A voz troca de boca, molenga. O cheiro forte de fumo e cachaça es-parrama-se. "Esse negócio de terra tremer é aviso.
Nessa terra coberta d’água, muito suor foi derrubado, muito sangue foi derramado, muito pai criou filho no cabo da enxada, a família, netos. Né assim de repente que a gente esquece..."
"Deu dó, né compadre?, porque esse terrâo roxo era o melhor desse mundo.
Era plantar e dar.
Lembra do mar de soja que tinha ali pra baixo? O senhor não viu que muitas famílias carpiram foram depois das águas?"
"E o café? O senhor não lembra cada pé que enfrentava até a geada braba?"
"Até a igreja da Vila Nova ficou embaixo d’água.
Ninguém respeitava mais nada. E depois vem esses moços, os genhero da companhia, e fala que a terra não guenta o peso desta agüona toda e por isso treme tudo.
Sei não.
Pra mim, quem faz bem se paga com bem. E quem faz mal..."
Os olhos passeiam: rugas das paredes da igreja, buracos dos muros do ginásio, cor desmaiada da tarde, cadelas que acompanham os guinchos da carroça no dia morno.
Olhos de Primeiro de Maio, onde até a alma fica encardida pelo roxo vulcânico da terra. "Aquilo que a gente faz com os calos das mãos, não há dinheiro que pague.
Inda mais a mixaria que pagaram pelas terras." "Muita gente largou a casa chorando, sem querer nem receber o que os homens da companhia queria pagar".
"Mas escutei uns zuns-zuns que os graúdos donos das fazendas lá da estrada receberam uma bolada grande, que o governo expropriou e pagou os tubos de dinheiro pros tubarão".
"Teve gente que não saía nem por muito dinheiro.
Aquele alemão da barsa, que atravessava as conduções, embirrou em não sair.
Como é que o homem ia ficar em cima deste mundão d’água, meus Deus do céu?" "Isso é aviso do céu.
Meus olhos de 75 anos ainda não tinha visto.
Ninguém ouviu falar da história das Minas Gerais, onde a água, em vez de descer o morro, tá subindo? Diz que lá mataram muita gente boa, lavrador, trabalhador.
Onde já se viu a água subir morro, Deus do céu?" "Ainda ontem, pensei que o mundo ia acabar com aqueles estoro.
Hoje, muita gente não foi na missa com medo do sino despencar.
Começou aquela tremedeira da terra... Lá em casa não ficou um caneco inteiro. A patroa tá com uma paúra daquelas.
As criança tudo calada".
Bernardo pede o canivete de Américo, enferrujado.
Arranja um "paieiro", traga fundo e, baforando, engole as palavras. "Deus quemelivre, mas são os mortos desta terra, que viveram aqui, que sofreram aqui, que abriram tudo esse picadão, dando murro em ponta de faca, que tão fazendo esse barulhão todo.
Acho que pra eles esse negócio de encher de água aquilo que eles suaram para arrumar, pra semear, é fazer o mal, Deus quemelivre! E mal com mal se paga, Deus quemelivre!"
A represa encardida, com seu corpanzil líquido, sepulta.
No boteco, o resto da conversa é afogado de um gole.
Nilson Monteiro é jornalista e escritor.
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