Histórias do Paraná - Corpo fechado
Corpo fechado
Francisco Brito de Lacerda
Nhá Catira não perdia a missa de domingo.
Ajoelhada perto do altar das Dores, ela tinha o jeito de quem pede perdão por todas as fraquezas do mundo.
Terminada a missa das dez, as Filhas de Maria, alegrinhas, encontravam seus namorados na praça.
Logo se via a fila do Asilo, puxada pelas meninas enjeitadas, todas de guarda-pó riscadinho; seguiam-se bobas de várias idades, gengivas à mostra, atentas ao apito do trem, como se à espera da viagem sem destino.
Deixando a igreja pela sacris-tia, nhá Catira ia direto para casa (bem pertinho, era só atravessar a rua), onde havia um altar enfeitado com flores sem viço, tão feias que por bonitas passavam. O cheiro de espermacete mesclava-se à catinguenta água dos vasos.
No altar, uma Nossa Senhora, um São Benedito; ao lado deles, a santa de barro, tida como Santa Catarina. E o famoso São Jorge de madeira, grandinho, montado num cavalo de crina vermelha e rabo verde. O dragão que o santo enfrentava tinha cara de cachorro. (Não seria o próprio Pêro Botelho?)
Benzer berrugas e rezar novenas era com nhá Catira, que também tirava mau-olhado.
Alegre ela se punha, a ponto de esconder com a mão a banguela, quando Joaquim Casinha, tocando viola, pés no chão, cantava uma melodia que se unia direitinho a estes versos: "Eu sou um negrinho sério / De mim mesmo tenho pena / Ai, ai, ai! / Embora queira ser branco / O cabelo me condena / Ai, ai, ai!"
Paciência nhá Catira tinha, e muita, com o Josezinho de Nhá Inácia, que só sabia contar até quatro.
Uma vez, vindo do quintal, Josezinho deu com nhá Catira a par do altar.
Pediu-lhe a bênção, e foi dizendo:
- Quer saber de uma coisa, nhá Catira? Eu enforquei seu cachor-rinho no galho da pitangueira.
Mecê não podia continuar jogando comida fora! Cachorro não carece de comida...
Passando a mão pela cabeça do beócio, como quem agrada, a negra velha enfatizava:
- Que Deus te perdoe, Josezinho.
Cada um dá o que tem...
Sentada na beirada das camas, um galho de arruda detrás da orelha, ela também socorria os desenganados.
Ia soltando suas orações.
Quando a vida do desenganado se esvaía, era só baixar-lhe as pálpebras.
Aliada de São Jorge, a curandeira sabia de uma oração para fechar o corpo das pessoas ante os afazeres da vida.
Quando temiam ameaças de inimigos, os moços iam pedir a ajuda de nhá Catira.
Usando um xale escuro, de franjas, que dava destaque ao seu pixaim esbranquiçado, a mulher os recebia com afeição de mãe.
Olhando a chama da lamparina, mudava o tom de voz conforme o rumo da narrativa.
Se o cavalo de São Jorge marchava, ela reproduzia, com as unhas, na tampa da mesa, o ritmo de sua andadura.
Enquanto São Jorge batia na casa do Senhor, os nós dos dedos de sua aliada faziam pã-pã-pã na madeira.
De repente, parecia que São Jorge ia abrir a porta do céu...
Francisco Brito de Lacerda, advogado
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