segunda-feira, 18 de abril de 2016

Histórias do Paraná - Estradas

Histórias do Paraná - Estradas

Estradas
Nilson Monteiro

Início da noite.
Fachos esquisitos, ardentes, brilharam ao mesmo tempo em três distâncias diferentes.
Clarão maior que farol de milha e mágico: não cegava, tampouco atrapalhava a visão.
Os três magros, suados, camisetas roídas nos sovacos, largaram para o mesmo destino, os brutões bufando.
Os faróis luziam mais que todas as estrelas, quem acreditasse em cometas do asfalto já teria o que contar para o resto da vida. O risco brilhante dos caminhões podia ser visto em Colorado, Curitiba, Ribeirão Preto, Ipatinga, Manaus, Belém ou São Paulo. A tocha, como um triângulo, seguia para o encardido norte do Paraná. Os caminhões, os que foram acordados pelo brilho, os assustados, os descrentes, os crentes, seguiram Dito, Tião e Mané. Mecânicos, lavradores, bóias-frias, guardas rodoviários, feirantes, políticos, prostitutas, motoristas, ciganos, padres, fazendeiros, ladrões, garçonetes, professores, médicos, agricultores, vagabundos, obscuros ou luzentes homens e mulheres que enxergaram os faróis, com ou sem profissão, não perceberam um pó fino, roxo, grudando nos poros, melecando as costas.
Ou o cheiro doce da antemanhã. Caminharam.
Maria vencera preconceitos.
Caminhoneira, dirigia até não suportar mais as dores.
José, seu companheiro, improvisava um berço na banheira onde testava câmaras remendadas.
Na borracharia, o cheiro era sujo, cinza, com mosquitos cansados namorando a lâmpada quase morta, cara de tomate.
José abaixou a voz de Sérgio Reis e seu menino da porteira no radinho vermelho de pilha.
Olhou as unhas massetadas, as mãos grossas, a roupa engraxada, pneus câmara, o batente, rodas, o martelo, o sossego do gato, a torneira pingando mole, nacos de borracha espalhados pelo chão, olhou a vida. E sorriu.
Boca a boca, buzina a buzina, a notícia correu o País. E este meteu o pé na estrada.
De Cambará a Paranavaí, de Presidente Prudente a Ortigueira, de São José dos Pinhais a Vitória, de Curitiba a Campo Grande, a mão virou única: atrás do Dito, Mané eTião.
Foram uma noite, dia, anos, secas e tempestades, calorões e geadas, meninos e velhos, orações e brigas, poeira soprando nos carreadores, relâmpagos trincando trilhas, trilhos e caminhos.
Eram risos caudalosos, espontâneos, quase inexplicáveis, misturados a lágrimas caudalosas, espontâneas, quase inexplicáveis.
Dito, Tião e Mané brecaram os brutos.
Nas mãos, uma garrafa de cachaça, um quilo de feijão e meio quilo de carne de sol.
Os fachos se encontram, único, varando o mato beira-linha.
Maria ardia.
Por um instante se fez silêncio.
Absoluto.
Absurdo. O mundo estacionado no acostamento, entre Londrina e Ibiporã. Até os grilos e as pererecas aquietaram.
Dito, Tião e Mané, as mãos ensebadas de direção e câmbio, arderam, abraçados a José, em brasa.
Um berro cortou a madrugada.
Os sinos desembestaram.
Feito loucos, um carrilhão descabelado, badalaram em todo o País. A moda sertaneja comeu solta em cada barraco.
Forró de sons, imagens e signos. E na borracharia Brasil começaram a aparecer coisas fantásticas como pães, goiabada, café, lápis, queijo, cadernos, roupas, peixes, um pedaço de rapadura, banana, arroz, mel, cachaça, espigas maduras, feijão, calçados, açúcar, sal, liberdade, prazer, laranjas, solidariedade, bifes, água, dignidade, terra...
Ana chorava, miúda e melecada.
Era natal.

Nilson Monteiro é jornalista e escritor.


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