quarta-feira, 27 de abril de 2016

Histórias do Paraná - Não haverá mais polacos? (I)

Histórias do Paraná - Não haverá mais polacos? (I)

Não haverá mais polacos? (I)
Wilson Bueno

- Polaco!
O xingamento batia feito porrada.
Sabíamos.
- Negrada!
A resposta vinha na fronteira do cuspo, no trecho de terra da Visconde de Nácar, esquina com Saldanha,
onde hoje ergue-se, imponente, o também já vetusto edifício Itália.
Em jogo, mais que a cor, o sentimento súbito de dignidade ameaçada.
- Negrada!
Espumávamos de raiva na sala de jantar da pensão de muitos quartos, casa de quatro olhos abertos como janelas sobre a Saldanha Marinho, arrendada por meu pai, tnigrante do Norte Pioneiro.
Sem nenhum, a família chegara no trem-da-fome, embarcada em Joaquim Távora.
No alheamento de crianças impossíveis, não percebíamos os horrores que imperam sobre a necessidade aflita
— nos arranjos e desarranjos pela subvida.
Pingentes do interior, caipiras, nos misturávamos a eles, aos polacos, como também às noites de saravá da umbanda e tentávamos decifrar, na casa em frente, do outro lado da rua, o mistério dos japoneses - escondidos sempre, arredios sempre, como se a diferença deles
fosse uma dor.
Experimentava-se o pepino azedo enrolado em folhas-de-parrei-ra, a princípio com nojo e logo depois, gulosamente, e aprendíamos com os polacos a exata maturação da uva nos parreirais improvisados no fundo dos quintais.
De cor fixa-va-se o tempo das maçãs, das pêras e dos figos.
Com os polacos, a família se iniciava, paciente, na arte das compotas nos vidros Trevisan — enxutos, cristais, espelhos.
E era curioso que aqueles meninos, que em casa falavam a língua arrevezada dos pais, nos corrigissem o português ordinário, e com o mesmo entusiasmo nosso fossem matreiros e habilidosos no "jogo-do-bafo" com as Zequinhas - disputadas na sorte e no braço.
Entendiam da vida, os gringos, seres reais, carne-e-osso, comuns como todos. E isto ante a nossa inexperiência era alguma coisa espantosa.
A minha cidade sertaneja ficou sendo mesmo um sonho curitibano.
O que vem em lembrança e a memória recolhe com dedos de melancolia, é o fotograma incolor da vida pobre, as casinhas de madeira sucedendo-se — da Saldanha Marinho até o muro dos fundos que dava para a Rua dos Chorões. Só a pensão triunfava, casa velha, imponente, abrindo a procissão de casas, quintais, hortas, árvores, parreiras, crianças e galinhas ciscando os pátios.
- Negrada!
Os polacos devolviam a provocação — sem saber que em tudo nos parecíamos: eles, com o cabelo cor-de-burro-quando-foge,
os invejados olhos azuis, as sardas, nós, capiaus interioranos cheios dessa estranheza com que índios acostumam-se aos brancos, e mais o cabelo preto, liso, na nossa cara de vulgaríssimos olhos escuros.
A pele, queimada pelo sol do Norte, desbotava, baixo invernos rigorosos e desusados.
Sentíamos o inevitável banzo das terras batidas pelo poeirão vermelho - uma nuvem de po perseguindo as jardineiras.
Aqui baixávamos hospitais (públicos) com a mesma freqüência incômoda com que o frio atacava amigdalas e faringes.
Polacada!
Negrada!

Wilson Bueno é escritor, criador e editor do jornal Cultural "Nicolau".


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