sexta-feira, 8 de abril de 2016

Histórias do Paraná - A fézinha

Histórias do Paraná - A fézinha

A fézinha
Mauro Goulart

"Titio" era um dos carcereiros da Prisão Provisória do Ahú, em Curitiba.
De idade indefinida, mas que poderíamos dizer "aí pela casa dos sessenta", fazia seu expediente à noite.
Sempre de chinelos, cujo ruído do arrastar quando andava permitia identificar, ao longe, quando vinha pelos corredores da prisão.
Quepe caído sobre os olhos e cobrindo uma calva não total devido a uma rala penugem de cor não identificada presente nas têmporas e no occípito.
Mesma sorte não tinham as gengivas, estas já totalmente abandonadas pelos dentes e normalmente desguarnecidas da dentadura.
Desleixado, "Titio" carregava a dentadura, surrada, suja e com dentes faltando, no bolso da camisa.
Quando ia mordiscar alguma coisa, sacava o exótico instrumento, como que um par de óculos jogando-a dentro da boca, onde se encaixava com impressionante rapidez.
Sempre que ia iniciar uma conversa dava um piparote na aba do quepe lançando-o para trás, pigarreava, e um eterno palito de fósforo, que corria de um canto a outro de seus lábios, adquiria vertiginosa velocidade.
Figura simpática, não fossem algumas manias constrangedoras e certas opiniões nada animadoras. Éramos em 15 presos, inicialmente, naquela cela, e uma das suas "conjecturas filosóficas" prediletas era: "Se Jesus Cristo, no meio de 12 apóstolos, tinha um traidor, imagine vocês aqui em quinze?" Decididamente, para quem estava preso por motivos políticos, em pleno AI-5, sendo visitado periodicamente pelos diversos órgãos de repressão, estas palavras não podiam ser identificadas como sendo daquelas "para elevar a moral".
O "Titio" pintava e bordava.
Acenava com vantagens, desde que "algum", "não como corrupção, mas como contribuição para pagar o ônibus e outros gastos menores", caísse no seu bolso.
Volta e meia nos apresentava uma lista de "contribuições voluntárias", feitas também por "iniciativa voluntária", dos presos de uma determinada galeria, como a arrecadação de alguns cruzeiros para ajudá-lo a cumprir o seu honorário mister.
Numa ocasião, o Ahú amanheceu alvoroçado.
Um grande banqueiro do jogo do bicho havia sido preso.
Como dizia Tatarovich, contrabandista iuguslavo: "Peixe dos grandes caiu no rede".
Mas estas novidades logo eram assimiladas, e o banqueiro deixou de ser figura notória em pouco tempo.
Logo, logo, já estava conversando conosco, embora tivesse sido alertado por toda a carceragem que: "aquela turma de estudantes comunistas era barra pesada".
Homem de conversa fácil, logo travou amizade.
Inclusive, vez ou outra, ia jogar um futebol de salão conosco, na nossa famosa 1 hora e meia de sol que tínhamos por dia.
Em pouco tempo, contávamos nossas aventuras (ou desventuras, sei lá). Embora homem de conversa fácíl, era extremamente zeloso de seus negócios, normalmente evitava comentar suas atividades.
Mas, num certo dia, numa roda de chimar-rão, depois que o falecido Sargento Alberi, que havia participado do episódio conhecido como a "Guerrilha do Coronel Cardin" contou as torturas que havia sofrido, o nosso — já
— amigo banqueiro do jogo do bicho desabafou: "Olha pessoal, ter sido preso por ser banqueiro de bicho é fogo.
Mas, fogo mesmo, foi no segundo dia em que estava preso, na minha cela, quando entra um carcereiro velhinho, totalmente banguela, andando arrastando o chinelo de dedo, dá um piparote na aba do quepe jogando-o para trás, e com um pequeno bloco de papel na mão, fala todo cordial: - "Boa noite, pessoal.
Quem quer fazer uma fézinha?"
Mauro Goulart, médico, ex-líder estudantil, foi preso político.


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