sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Histórias de Curitiba - Enterro a galope

Histórias de Curitiba - Enterro a galope

Enterro a galope
Valério Hoerner Júnior

Em 1936, o poeta e então vereador Ciro Silva, numa legítima afirmação de conhecido dinamismo, resolveu que os enterros, em Curitiba, deveriam perder o ritmo caranguejoso de costume, em que se arrastavam por longo tempo e interminável séquito pelas ruas da cidade na direção da última morada.
Deitou, então, projeto na Câmara propondo a fixação em 15 quilômetros horários a velocidade dos futuros cortejos fúnebres.
Na verdade, esses cortejos na época significavam expressivo desafio até para as mais resignadas paciências, pois não passava de dois a três quilômetros por hora a celeridade da carruagem puxando a fila.
De modo que se a casa do morto (velórios eram sempre em casa, na sala, de onde todos os enfeites eram retirados à guisa de respeito ao falecido; in-verídico: eram retirados para não serem carregados por eventuais carpideiras) ficasse nas bandas do Portão e o enterro fosse no Cemitério Municipal, uns bons 15 quilômetros deveriam ser percorridos. A três quilômetros por hora, os cavalicoques do Pires ou do Pedro Falce cobririam o percurso em modestíssimas cinco horas.
Inconformado com tal disparate, o inquieto legislador propunha reduzir o mesmo enterro a uma hora apenas de suplício.
O projeto foi então transformado em lei, sob o aplauso da unanimidade.
Com isso, os defuntos passaram a tomar seus lugares debaixo da terra sem o vasto patrimônio de más vontades, restando ao inditoso apenas a pesada carga de ter morrido.
Com a inacreditável velocidade praticada a partir de então, que soava mais a desrespeito aos princípios religiosos e ao morto, desapareceram também alguns clichês da cultura curitibana: na ligeireza do séquito não havia banda de música que executasse com garbo as sentidas marchas fúnebres, nem as janelas permitiram o apinhamento de curiosos e fu-triqueiros a, basbaques, querendo saber "quem é o morto?, morreu de quê?, quantos carros de coroas?, deixou seguro de vida?..." Interessava a todo mundo, a família enjanelava-se a criadagem espiava do portão. A cavalhada, todavia, assumindo o trote em substituição ao passo de cágado praticado até então, teve de ser substituída.
Fogosos corcéis brancos tomaram o lugar dos antigos pan-garés, aposentados dignamente com vencimentos duplicados de ração de alfafa, milho e capim-gordura.
Até que um dia, ainda mal treinados para a piedosa tarefa, embora de rédeas soltas para vencer em trote garboso a distância dentro da velocidade estabelecida por lei, desembestaram os empi-nados bucéfalos nas imediações da Mercês, levando de roldão uma carroça de verduras que vinha de Santa Felicidade.
Prejuízos mesmo somente pelas verduras esparramadas. O cortejo, no entanto, seguiu.
Nem poderia ser diferente.
Mas a italiana processou o Falce (ou o Pires), que por sua vez atribuiu a culpa à Câmara, que aumentou a velocidade nos trajetos. E a Câmara eximiu-se do vereador Ciro Silva. E ficou nisso porque na cabeça de ninguém mais passava a possibilidade de retorno à cadência de tartaruga.
O momento era o da velocidade.
Eram os tempos do Pi-tancuda!

Valério Hoerner Júnior é escritor.


Fonte: 300 e Tantas Histórias do Paraná, Brasil.

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