segunda-feira, 7 de julho de 2014

Histórias do Paraná - Lousa de ardósia

Histórias do Paraná - Lousa de ardósia

Lousa de ardósia
Lourdes Lacerda Suplicy

Lapa.
Colégio São José. 1929
Com a irmã Rita, professora das primeiras letras, meus colegas e eu aprendemos a ler em apenas três meses. A ler e a temer o inferno.
Para dar mais ênfase às suas histórias sobre o diabo, a freira ingênua fazia uma pantomima aterradora: arregalava os olhos, erguia a tampa da sua mesa e, enquanto deixava cair, passava uma rasteira na cadeira e corria para a porta com estardalhaço.
Assim, a imagem do diabo perturbou o nosso sono até a idade adulta.
Mas a alegria voltava quando atravessávamos a praça da Matriz com os nossos uniformes de sarja azul-marinho, saia pregueada, blusa com cabeção e reluzentes sapatos de verniz preto.
Desfilávamos sempre em duplas: nas paradas de 7 de setembro, a caminho da Igreja, para entrar em aula.
Como católica apostólica lapeana, naquela velha Igreja recebi os ensinamentos que me amparam até hoje.
Naquele tempo, o cheiro de incenso e a sineta na hora da elevação despertavam mais temor do que fé; mas a fé era simples, provinciana e sem complicações.
Assim como escrevíamos na lousa de ardósia, emoldurada de madeira com lápis especial e apagávamos tudo com o trapo que pendia do barbante, do mesmo modo muitas lembranças que pareciam marcadas para sempre desapareceram na lousa do tempo.
"Está no mundo da lua, menina?"
Curitiba.
Colégio Cajuru.
1938.
Em instantes de devaneio, a menina magra e esverdeada que eu era aos onze anos se sobrepõe à adulta.
Por vezes prevalece uma outra imagem, a da adolescente rósea e gordinha que voltou para casa após um ano de internato do Colégio Cajuru.
Matriculada sob o número 177, todo o meu enxoval comprado na Maison Blanche levou esta marca.
Entrei no Colégio acompanhada por meu pai e minha mãe. Já no parlatório pensei em fugir, quando uma freira de hábito preto (que o Concilio Vaticano II levou para sempre) se acercou de nós.
Quando um sino estridente tocou fui deixada ali e, a partir daquele momento, o sino passou a regulamentar a minha vida ao lado das colegas: hora de levantar, de rezar, de estudar, de comer, de brincar. O sino também chamava as freiras, identificadas por um código de batidas.
Como sino francês é feminino (la cloche), o sino do Cajuru foi batizado com nome de mulher: Geraldine, Josephine, Albertine...
A diretora, irmã Júlia, pequena, enérgica, de olhar penetrante, repetia: "Mes enfants, la politesse est la règle de bien vivre et bien faire toutes les choses".
Assistíamos missa diariamente e só saíamos uma vez por mês, nós as internas, quando nos comportávamos bem.
Nos três grandes dormitórios éramos agrupadas por idade: pequenas, médias e grandes.
Oitenta camas em cada dormitório.
Deitada, olhando o teto, as luzes que por vezes iluminavam a escuridão eram, para mim, reflexos de um trem partindo e me levando para a Lapa. A gente sempre tem um trem nas lembranças, um trem que chega ou que vai, que apita longe.
Os trens da infância.
Um dia, não resisti e fugi. A pé. Com algumas colegas percorremos quilometros.
Logo fomos "devolvidas" para o Colégio e, como castigo, ficamos dois meses sem sair.
Em uma carta que escrevi para casa, filosofei: ‘‘Possivelmente nossos pensamentos se encontraram pelos caminhos da saudade.
Veio a carta de papai e lá foi a minha". Hoje meu pensamento também se encontra pelos caminhos da saudade, lembro pequenos detalhes: a sala de aula, a carteira e a voz da irmã Eucaristia: "Lourdes, attention!"
Vó Ude! Vó Ude!
A voz de um neto, urgente e imperiosa, me chama ao ano de 1993.
Lourdes L Suplicy, avó e dona de casa


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