terça-feira, 1 de julho de 2014

Histórias do Paraná - O esclarecido

Histórias do Paraná - O esclarecido

O esclarecido
Lauro Grein Filho

Já tive oportunidade de comentar o quanto me decepcionou a interferência de crendices e tabus ao início da carreira médica. Não estava habituado a tais histórias, nem as imaginava tão freqüentes e capazes de interferir na rotina profissional, dificultando-a a todo o instante.
Todo o começo é animado de entusiasmo e me empenhava em oferecer o máximo de minha ciência, tudo o que sabia e podia em benefícios dos que me procuravam. E porque desejasse colher os bons frutos do trabalho que realizava, as intromissões espúrias, os palpites comadrescos, as opiniões de leigos, eram sumamente desagradáveis.
Aqui o cidadão contrário à injeção, recurso jamais admitido pelo pai e pelo avô, ambos passados dos oitenta, ali a benzedeira a propagar três rezas por semana, o melhor para os "males do ar", "o inchaço", a "rendidura das cadeiras". No decorrer dos tratamentos era infalível a intromissão de "entendidos" a indicarem o purgante, o escaldapés, as ventosas, o cataplasma, as lavagens, o sinapismo.
Nos casos de ferimento, o pó de café, a teia de aranha, a folha gorda.
Havia para os lados de
Socavão um respeitável senhor, cujo maior enlevo era o manuseio de conhecida farmacopéia popular.
Julgava-se dono de prodigiosos segredos da medicina, os quais generosamente distribuía pelos habitantes do bairro.
Homem abastado e de numerosa prole, com prestígio consolidado na região, ocupava destacado cargo em nosso Diretório Regional.
Quando das visitas que fazíamos à sua casa em meio ao acesso das campanhas, impunha-se aos médicos a recomendação expressa de não contrariá-lo em sua opinião.
Porque qualquer desacordo poderia aborrecer o Sr. João Carvalho, importante companheiro de partido.
Pela cidade doutrinavam vários curandeiros, cujas farsas e preceitos ganhavam fôros de verdade no entendimento dos que lhes recorriam.
O exercício da medicina encontrava, pois, esses embaraços, numa mentalidade de três décadas atrás, num ambiente de lendas, fantasias e simplicidade.
Estava a amargar tais decepções quando, uma tarde, ao correr de conversa com pessoa lúcida e esclarecida, descambei para o assunto que tão de perto me aborrecia. O cidadão imediatamente me aprovou, passando desde logo a criticar toda a sorte de superstições, crendices e tolices, casos e coisas ligadas às curas e à saúde.
Revelava uma visão exata de tudo, me encorajando e me animando ao desabafo das minhas dificuldades.
Encontrara, por fim, alguém mais arejado que me ouvia e me compreendia.
O diálogo caminhava assim, caloroso e sob mútua concordância, quando lembrei, a propósito, um fato ocorrido na véspera.
Contei-lhe de certo cliente que me procurara, atribuindo sua crise de reumatismo ao fato de haver tomado café com leite e saído imprudentemente para o sereno.
Foi aí que o indivíduo mudou de todo:
- "Bem doutor, nesse caso o senhor me desculpe, mas ele é que está certo e o senhor é que está errado.
Tomar café com leite e sair para fora, entorta mesmo. E, na hora! Pode perguntar pra nhá Marica Barbosa que entende disso e não me deixa mentir.
Eu mesmo já vi vários casos assim. Aí não, doutor, tenha santa paciência."
Falava sério e enérgico, com evidente conhecimento de causa.
Sua convicção era firme e inabalável.
Qualquer contestação seria inábil, desaconselhável.
Senti que não deveria prosseguir. A conversa estava esvaziada e, com meu silêncio e minha capitulação, definitivamente encerrada.

Lauro Grein Filho, médico e presidente do Centro de Letras do Paraná


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