segunda-feira, 7 de julho de 2014

Histórias do Paraná - A visita da titia

Histórias do Paraná - A visita da titia

A visita da titia
Domingos Pellegrini

Quando ainda se cruzava o Tibagi de balsa, um casalzinho mudou para Londrina, ele pobre e ela de família paulista
quatrocentona — que achava morte em vida viver naquele sertão.
Então a tia solteirona resolveu dar uma olhada, numa visita surpresa.
Era do tipo que levava malas, maletas, bolsa, frasqueira, sombrinha, chapéu.
Saiu de Ourinhos, última etapa da viagem, diretamente do cabeleireiro para a jardineira.
Dali à Londrina era um pulo, disseram, e ela queria chegar como uma flor naquele fim de mundo, pronta até para levar a sobrinha de volta à civilização.
Imagine, viver numa cidadezinha no meio da mata!
Em 35 a jardineira ainda era aberta dos lados, com estribos, e as malas iam na capota.
Ela achou aquilo um horror.
Depois, quando o poeirão vermelho fechou a estrada de não se ver nem o motorista, ela mandou parar, disse que ia descer. O motorista parou e já ia tirando as malas, ela olhou a mata e resolveu continuar. O penteado ia endurecendo e avermelhando de poeira, como a folhagem da beira da estrada.
No Tibagi, tiveram de esperar a balsa e ela foi se lavar na beirada, caiu no rio, bem onde os pescadores limpavam peixe, num lodo de escamas e tripas.
Lavou-se como pode numa casa de caboclo, trocou de roupas e atravessou o rio fedendo peixe mas conformada: nada mais podia acontecer de ruim depois disso. Aí caiu um toró e, faltando tão pouco que viam a fumaça de Londrina, teve de ajudar a empurrar a jardineira. Não queria, mas o motorista falou: "Madame, ou todo mundo ajuda ou fica todo mundo."
Empurrando caiu de frente no barro vermelho, grudento, pediu pra morrer, mas o pior estava por vir: a jardineira atolou de vez e teriam de alcançar Londrina a pé. Ela falou que jamais ia abandonar as malas de estimação, e um sujeito barbudo, mais grosso que toco de açougue, disse que logo ia anoitecer e ela não conhecia os mosquitos dali. O homem se ofereceu para levar alguma coisa, ela deu a maleta, foi com a frasqueira.
Entre atoleiros e enxurradas ela foi vendo que ele até que era gentil, dava a mão para ajudar, não ria quando ele caía.
Deu sede, ele mostrou o caminho duma mina de água limpa e gelada.
Depois cortou uma palmeira a facão, ela falou que judiação.
Ele tirou o palmito da palmeira, tirou o miolo do palmito e ofereceu, ela provou, era uma delícia.
Fica melhor com mel, ele falou enfiando uma caneca num toco, tirou cheia de mel de jatai.
Mas o melhor mesmo é isto aqui - ele apresentou um cantil de uísque, que os ingleses da Companhia de Terras mandavam vir da Escócia.
Depois do terceiro gole ela disse que, afinal, a tal terra-vermelha também tinha algumas coisas boas. E você ainda não viu nada, disse ele, abraçando para ela não cair de novo.
Chegariam a Londrina com o cantil vazio, abraçados e cantando uma modinha.
No dia seguinte, quando contaram, ela quis morrer de vergonha mas nem teve tempo: ele já estava na porta com duas alianças de noivado e um caminhão carregado de sacas.
Disse que estava indo vender café, tinha aproveitado para perguntar se ela não queria casar. Não tenho muita coisa, ele falou, mas o que interessa mesmo você já conheceu ontem, não é?
Casaram em um mês, tiveram um nenê de oito meses; e ela, com seus finos modos, faria escola entre as senhoras e moças da Londrina pioneira. E sempre diria que terra boa, mesmo, é onde a gente se acha, sabe?

Domingos Pellegrini, escritor


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