Histórias do Paraná - Cascatinha
Cascatinha
Nilson Monteiro
A alma italiana falou mais alto quando os irmãos Pedro e Ogênio Trevisan tiveram que decidir entre comprar uma empresa
de transporte com seis ônibus, ou uma lasca de terra, com 48 mil metros quadrados, coberta de mato, nas margens
da Estrada do Cerne.
Eles tinham acabado de voltar, em 1946, da II Guerra Mundial, cujos desafios viveram, na Itália, por um ano e meio,
como expedicionários. O gosto de pisar no chão, senti-lo entre os dedos, rasgá-lo com vontade e até ternura, para plantar,
como ensinava o avô Félix, do Vêneto, os fizeram gastar seus 90 contos de réis na compra de um sítio da família Manosso.
Para lá se mudaram, à beira do rio Ivo, uma veia do Barigüi, que ali tinha (tem) uma queda d’água que chamava tanto a atenção
quanto a mata, os pequenos bichos, o cheiro da terra, a vida daquele pedaço de mundo italiano encravado nas barras de Curitiba.
A casa de madeira onde foram morar Ogênio e Alice, recém-casados, teve um quarto separado para servir de mercearia.
Ali a família vendia fubá de milho feito na roda d’água nos fundos do quintal.
E dona Alice servia sonhos, pastéis, empadas e sorvetes para quem vinha, aos domingos, refrescar-se na cascatinha.
O local virou ponto de encontro.
Em 1949, eles inauguraram o primeiro restaurante de Santa Felicidade.
Os agricultores Pedro e Ogênio sentiam na boca o gosto do comércio. A pequena casa atendia principalmente
caminhoneiros que vinham do Norte do Estado, transportando café para o porto de Paranaguá.
Mas, com seu "sortido" - radiche, risoto, frango e polenta fritos — começou a cativar também carroceiros, colonos
e empregados das inúmeras pedreiras vizinhas ao bairro.
Os Trevisan, contudo, continuaram plantando. O vinho das refeições era produzido de seu vinhedo.
As verduras, colhidas em sua terra.
Os frangos e porcos criados no sítio.
Pedro e Ogênio, filhos de Ângelo, criaram seus oito filhos no mesmo quintal, enquanto Santa Felicidade transformava-se
na capital gastronômica do Paraná, com restaurantes brotando aqui e ali, o bairro mudando sua pose, sem perder o tempero italiano.
A casa de madeira teve cinco mil flâmulas penduradas pelas paredes. O costume, contam Pedro e Ogênio, era uma mostra
do bem-querer dos clientes, que lhes davam as flâmulas. A estrada virou avenida.
A casa de madeira, que passou por sete reformas até 1972, foi substituída por um prédio em alvenaria de 1,4 mil metros quadrados.
Os filhos começaram a ajudar Pedro e Ogênio em seu negócio, enquanto dona Alice continuou enfiada na cozinha, fazendo o que mais sabe.
Ogênio mostra a mão de agricultor, apesar de os hábitos terem mudado:
a saúde pública não permite que se criem porcos e frangos no fundo do quintal; a carne vem de um abatedouro;
o vinho, de outros produtores; as 8 mil refeições servidas mensalmente no restaurante têm, obrigatoriamente, que ser produzidas em ritmo industrial.
E a marca do tempo, entendem os irmãos.
Altevir, sociólogo, filho de Ogênio, administra o Restaurante Cascatinha.
E Renato, filho de Pedro, é o responsável pelo Castello Trevizo, novo restaurante da família, construído na mesma lasca de terra e com capacidade para alimentar 1,2 mil pessoas de uma só vez.
Pioneiros, de olhos molhados ao reviver sua história, Pedro e Ogênio sentem o cheiro dos anos 40 no borbulhar das mesmas águas.
A cascatinha, saudade líquida, é a mesma. E a alma é a mesma, italiana.
Nilson Monteiro, jornalista
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