sábado, 19 de julho de 2014

Histórias do Paraná - Tragos

Histórias do Paraná - Tragos

Tragos
Nilson Monteiro

I
Bico do umbigo no balcão, ele não gasta saliva à toa. A língua, navalha para os inimigos e seda para os amigos.
Papo aceso, fácil, enfia-se pelas brechas do mundo, competente, garimpando
informação e batucando as teclas, viciado em notícias. E o mesmo a qualquer hora do dia: puro jornalista.
Com ou sem gelo.
Biritinha aparece na Redação da "Folha" às 8 da matina. E convida: "Vamos numa?" A essa hora, Biritinha??? A resposta é filosófica: "Cana não é remédio". Eu suspiro: as grades não são, realmente, solução.
Biritinha esfria: "Não tem hora para ser tomada". E, saltando de dois em dois degraus, vai pro balcão do Lema.

II
Doutor Vergara, louco de bueno, tchê! Foi, durante anos e anos, editor de notícias internacionais da "Folha de Londrina". Fanático torcedor do Internacional, sempre com uma camisa rubra dos pampas sob qualquer outra (aliás, outras sempre puídas nos punhos), o advogado Vergara ensinou a gerações da "Folha" os mistérios, segredos e o mais puro dia-a-dia do jornalismo.
De uma simplicidade aguda, não economizava emoções ao falar da dignidade da profissão, dos quilômetros de telex que devorava todo dia, das qualidades de seu velho Gordini, das mãos sujas do trabalho, também diário, em uma horta que supria a todos na Redação, do pomar cultivado em sua chácara...Falava alto, explosivo e amistoso.
Com todos nós, inclusive com seu filho, Vergarinha, que não sei se ainda trabalha na Revisão do jornal.
Tinha lá suas manias.
Uma delas: preparar a caipirinha que, sem modéstia, chamava de "a melhor do mundo". Depois de fechar sua página e deixar algum plantão escalado, nas tardes de sábado, juntava o bando na chácara onde morava. A receita: conversa das boas, pinga da melhor qualidade, açúcar, e limão.
Limão, aliás, colhido em plena sala de sua casa.
De um limoeiro que foi plantado, cresceu e aproveitou-se de enorme e descuidado buraco no piso para reinar na sala do doutor Vergara.
Garanto que era uma flor.

III
Tenente só trabalhava turbinado.
Na cidade ou na estrada, calibrava com a branquinha, separando, religiosamente, o gole do santo.
Na "Folha", onde ele trabalhou muitos anos, todos sabiam de seus tragos, mas poucos ligavam.
Atencioso, dirigia bem, respeitando as mais elementares leis do trânsito.
Era, sim, querido pelos repórteres: milongueiro, interessado e interessante, pleno de histórias, verdadeiras, inventadas, língua solta estalando.
Na boléia do fuscão, corria chão, costurando roteiros pelos botecos.
Pontual, não perdia compromisso. O jornal tinha que estar a tal hora em Paranavaí? Lá estava. O repórter tinha que chegar quase junto das notícias em Foz? Chegava. O fotógrafo tinha que se antecipar aos fatos em Maringá? Antecipava-se.
Tomava uminha antes, no bar ao lado da garagem da "Folha", e outras pelo caminho.
Mas, não cometia loucuras além dessa.
Naquela madrugada, lotou o Fusca de jornais (na década de 70, a "Folha" entregava os jornais pelo Estado com seus próprios carros) e, para espanto da turma da Circulação, não aceitou tomar a purinha.
Nenhuma.
Para espanto ainda maior dos botequeiros, velhos conhecidos, não parou em nenhum dos bares no mapa Londrina/Curitiba.
Na serra antes de Campo Largo, quase dia nascido, encostou o Fusca na proteção lateral da estrada.
Desligou o motor do carro. E o seu.

Nilson Monteiro, jornalista


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