Histórias do Paraná - O degolado 495
O degolado 495
Valêncio Xavier
A Revolução Federalista foi a mais sangrenta que o Brasil conheceu, nela morreu mais gente do que em todas as outras que o país já teve até hoje.
Além das mortes em combate, muita gente morreu degolada.
Os maragatos de Gumercindo Saraiva não faziam prisioneiros, degolavam os vencidos.
Quando as tropas federais retornaram ao Paraná também cortaram alguns pescoços, não tantos quanto os federalistas, mas cortaram.
O degolador maragato mais habilidoso e famoso foi o Nego Adão, com não sei quantas cabeças cortadas nas costas.
No final de 1893, os federalistas invadiram o Paraná. Em janeiro de 1894, sitiaram a cidade da Lapa, o governador Vicente Machado e o general Pêgo Junior, comandante das tropas governamentais, debandaram deixando o Paraná entregue a sua própria sorte.
Os maragatos entraram em Curitiba sem disparar um só tiro, o general Gomes Carneiro ficou sem ajuda para sua obstinada resistência na Lapa. O Paraná virou terra de ninguém, com os federalistas arrebanhando gado, cavalo, comida, armas e "voluntários" para suas tropas.
Nesse clima de "Deus dará", aconteceu, em Ponta Grossa, um caso digno de filme de bangue-bangue, ou de fita de samurai, envolvendo o Nego Adão.
Munido do necessário salvo-conduto, o coronel (titulo honorífico) Souza Araújo saiu de Ponta Grossa num carroção para buscar mantimentos em sua fazenda.
Estava carregando as mantas de charque, quando chegaram uns vinte cavaleiros armados de mosquetões e espadas.
Eram os maragatos. O coronel corre para dentro da casa da fazenda e volta com sua Winchester.
Pare homem! Largue a arma senão morre, grita o comandante do bando, avançando de espada em punho. O coronel aponta e dá no gatilho, mas é laçado pelo pescoço e o tiro se perde no ar.
Começa o roubo do charque, enquanto o coronel é desarmado e amarrado.
Feita a limpeza, o bando parte a galope, puxando o coronel a pé, correndo atrás dos cavalos para não ser enforcado pela corda que tem no pescoço.
Na corrida, tropeça, cai e é arrastado pelo chão, mas consegue segurar na corda, impedindo seu enforcamento.
Quando não está mais agüentando, o bando pára na beira dum capão de mato para churrasquear.
Enquanto preparam o fogo, Nego Adão perguntava: Comandante, posso charquear o bicho? A resposta é positiva e Nego Adão ordena: Dasatem, não gosto de matá gente amarrada.
Puxa uma sebenta caderneta do bolso e vai anotando com seus garranchos o numero 495. O coronel vai ser o degolado 495. Tirem a roupa dele, o casaco tá todo rasgado, mas a camisa ainda dá pra usá. E vai afiando o facão na palma da mão: tenha medo, não coronel, a bichinha tá boa de corte.
Vendo-se perdido, o coronel tenta o último recurso, quando estão puxando sua camisa pela cabeça, segura-a, o homem que puxava faz mais força, ele larga a camisa e o homem cai no chão. O coronel aproveita a confusão e pula dentro do mato e sai correndo, se rasgando nos espinhos.
Alcança um riacho, atravessa e some.
Quando o bando chega na beira do riacho, o coronel já estava longe.
Alta noite, debaixo de chuva, seminú, corpo escoriado, rasgado por espinhos, o coronel chega a Ponta Grossa, tremendo de frio, mas com a cabeça no lugar.
Valêncio Xavier, escritor e historiador
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